segunda-feira, julho 31, 2006

Ligação da Galiza

Agradeço ao Gourmet de Províncias, da Galiza, a referência a este blogue, entre outros blogues portugueses. Lá chegarei à bela cozinha dos nossos irmãos de Língua, das vieiras, da pescada, do lacón, ao pote gallego, ao chuletón, à queimada, a tantas coisas boas do outro lado do Rio Minho.

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A (nada) Ilustre Casa de Ramiro em Óbidos

Onde vamos jantar, onde não vamos, fomos cair em Óbidos. O restaurante parecia bem, a sala demasiado soturna condizia com o séc. XIX do plagiado título Ilustre Casa de Ramires.

Entre muita hesitação, acabámos por fazer uma vaquinha: uma dose de cherne em espetada e outra de arroz de pato, isto a conselho do maître, por serem especialidades da casa. Água e meia garrafa de Duas Quintas 2002, normal, a meu pedido. Vieram os habituais entreténs de boca, habituais também na falta de qualidade dos enchidos, na vulgaridade dos croquetes em forma de bola. Ainda assim, o que se safava era os queijinhos frescos, de uma marca que, ainda por cima, os faz às dezenas de milhar. Isto já me tinha posto de pé atrás.

Entretanto, eu recambiara o Duas Quintas, para que o descessem dos vinte e muitos graus para uma temperatura decente, que tive de nomear: 18ºC. Neste país, a temperatura ideal para beber vinho é a ambiente, que pode ir abaixo dos dez graus até aos trinta e muitos. Tinham vindo já com dois copos enormes, não sei se Riedel, do tipo Borgonha, que também foram para trás, ridículos para um vinho como aquele. É aflitiva a falta de profissionalismo e de cultura do meio em muita da restauração portuguesa - falo daquela que se dá ares do que quer ser e nunca será.

Serviram a espetada de cherne: descuidada, em pedaços grandes e pequenos, uns envoltos em bacon, outros de onde o bacon desaparecera, uns passados de todo, outros menos passados e nenhum no ponto.

A seguir distribuíram o arroz de pato, cuja única originalidade era levar coentros (a hortelã ligaria melhor para meu gosto), mas dei o benefício de um sabor curioso, embora, quanto a mim, deslocado. Já não dei benefício nenhum foi à qualidade do arroz: curto, cozido de mais, quase sem sabor por trás da gritaria dos coentros, além de ter sido feito para o almoço, sem qualquer dúvida.

Ainda tive alguma esperança na sobremesa, quando arregalei os olhos para a barriga de freira. Arregalei os olhos, passe a graçola, ainda que as freiras soubessem bem porque punham nomes eróticos aos seus doces, no tempo em que os conventos serviam de estalagem à Igreja e acolhiam clérigos em jornada, os beiços gulosos de açúcar e de pecados a saber a sal.

Qual quê! Triste barriga pálida (...) e fria (“seu lábio tristíssimo sorria”, António Feijó), amarfanhada num prato de barro de tarta al whisky. Quais fios de ovos, qual travessa farta! Miséria, imbecilidade, parlapatice.

Veio o café e pedi uma ginjinha da terra, que é famosa. Era da terra, sim, mas exclusiva do restaurante, disse o maître. Um dedal somítico.

Foi a única coisa boa que me calhou. Uma delícia rara que me fez esquecer, por algum tempo, a extorsão de setenta e muitos euros. Agora, ilustre casa, só a de Eça, se a reler. A Ilustre Casa de Ramiro é um plágio, uma aldrabice, uma caverna de Ali Babá em Óbidos. Os fiscais deviam ir lá com a polícia de choque, trazerem a ginja toda que houvesse e fecharem o restaurante para sempre.

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sábado, julho 29, 2006

Bacalhau podre ou
Qualquer dia faço uma subscrição na blogosfera para comprar uma máquina fotográfica

Por aqui faz-se bacalhau podre com algumas variações. Digamos que esta cidade ou é onde ele surgiu, ou onde mais se come por restaurantes. D. Zeferino, já falecido e o maior demagogo que conheci em coisas de cozinha regional, dava-o como oriundo de Trás-os-Montes, teoria que não merece grande crédito, apesar de os defuntos ganharem virtudes que nunca se suspeitou terem em vida. No entanto, a teoria espalhou-se e ganhou foros de verdade histórica (ainda que possa ser transmontano, não tenho provas de nada). A teoria de D. Zeferino era que falava para parvenus ignorantes, numa linguagem barroco-naïf e esses, ainda por cima provincianos, engolem tudo e nunca desmentem o quer que seja com medo do ridículo, o seu mais devastador inimigo, sempre invisível nos espelhos onde se miram.

Googlando, fui encontrar o bacalhau podre em Maçainhas, nos arredores da Guarda, em Vila Nova de Paiva das Terras do Demo, de Aquilino Ribeiro, em Manteigas, lugares relativamente perto daqui. Mais longe, num restaurante do Porto, noutro de Avintes e, nas minhas estantes, também, no Pantagruel, em duas versões diferentes, mas nenhuma parecida com esta ou com as outras que tenho comido. Nos livros de cozinha regional que tenho, nada com esse nome.

Onde, pela primeira vez, me encontrei com o dito foi num pequeno restaurante dos subúrbios da cidade. O molho era da cor deste, e nunca mais o tinha comido assim. O restaurante mudou de dono e, com ele, o bacalhau. Tentei uma vez recrear essa cor e falhei. Não tornei a fazê-lo até ontem. Enfim, ontem, já com bastante mais experiência, deixei parte da cebola queimar um pouco, usei vinho do Porto escuro e tomate meio verde. Saíu a contento, um bacalhau podre que quis propositadamente diferente, salvo na cor daquele original e primeiro da minha vida.

Acompanhá-lo-ia de puré, se não o achasse excessivo, ou ainda mais excessivas as batatas fritas com que também o trazem.

O que usei: uma posta de lombo de bacalhau congelado, que é tão bom como o melhor, descongelada naturalmente e partida em duas por ser grande demais. Dois dentes de alho esmagados, meio tomate avantajado e pouco maduro, salsa, uma cebola às rodelas cortada na tábua, vinho do Porto colheita 1990, pimenta preta em grão, duas fatias de presunto, azeite do tal que se usa aqui, fécula de milho para espessar o molho.

Adereços: um pouco de cebola ainda transparente, retirada antes de a deixar escurecer, as fatias de presunto cozinhado, um cisco de tomate bem vermelho com a casca, salsa picada, um dente de alho de aperitivo, três azeitonas pretas, galegas, de que me esqueci.

Para fritar o bacalhau: azeite, farinha de trigo, 1 ovo batido com 1/2 colher de sopa de azeite e sal.

Comecei por fritar a cebola em azeite num tacho. Quando macia e transparente, retirei parte dela e reservei-a. Deixei a outra parte escurecer um pouco mais do que o estrugido para o arroz que se come no Porto. Parti o tomate em dados grosseiros, sempre com pele e grainhas quando é para coar depois o molho. Juntei a salsa, a pimenta preta em grão, os alhos esborrachados com a casca. Deixei estufar, acrescentando goles de água quando necessário e também para fazer o molho em quantidade necessária. Juntei vinho do Porto sem sovinice. Continuou a estufar. Deitei um gole de vinagre de bom vinho tinto, feito em casa, e deixei que fervilhasse. Coei o molho pelo chinês, espessei-o um pouco com fécula de milho e pu-lo de lado, naquele mesmo tacho, entretanto já lavado. Reservei-o.

Passei a posta de bacalhau por farinha e ovo e repeti mais uma vez este procedimento. Fritei-a em azeite abundante, tendo o cuidado de a abanar para que, apesar do fundo de teflon, o polme se não agarrasse ao fundo.

Frita a posta, pu-la no tacho com o molho que, entretanto, já fervilhava. Deixei-o penetrar e amolecer o polme uns cinco minutos de cada lado. Retirei a posta, empratei-a e pus-lhe os adereços.

Consolei-me. Bebi uma Mao bem fresca, cerveja de Madrid de que gosto bastante. Não estive para descer à garrafeira e trazer um vinho branco. Já trabalhara de mais. No entanto, agora tenho pena de não ter ido por um Arinto que tenho da Bairrada, impecável, com mais de 30 anos. Parece incrível, ainda tem cheiro do fruto e, na garrafa, a cor de um vinho jovem. Meia hora depois de aberta é que começa a oxidar, a ir do original amarelo palha para o amarelo escuro. Pensando bem, a cerveja foi melhor. Não é um branco para se beber sozinho. Às tantas, ainda me votava a uma depressiva melancolia...

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quinta-feira, julho 27, 2006

Pior que trabalhar muito é não fazer nada

Nem mais: ontem esqueci-me de almoçar. Eram umas onze da noite quando cheguei a casa. Ao cabo de catorze horas ininterruptas de trabalho (que é de gabinete), é difícil pensar em fogões, e fui ver ao frigorífico se havia algo que se trincasse. Haver, havia. Fiquei-me foi por umas fatias de carne de vaca estufada em peça, da véspera, eram umas duas ou três, bem menos que a minha fome. O molho estava por cima e entranhara-se entre elas, meio em gelatina com o frio. Estavam unidas umas às outras e, dada a grande urgência que a fome põe em comer, foram mesmo como estavam, mais que frias, de garfo e faca, cortando-as como se fossem uma só.

Estavam uma delícia, mesmo sabendo que, assim, não há ruim pão. O sabor mais acentuado do molho e a gelatina realçavam o sabor e a textura carne, de resto de muito boa qualidade (sou eu quem usualmente a traz). Era da pá, chamam-lhe agulha onde a compro. Como os nomes variam de lugar para lugar, é uma peça daquela parte da carcaça, que tem ao meio uma cartilagem, excelente para assar e estufar inteira.

Perguntei a quem fizera a carne como tinha procedido. Simples: azeite, do tal de V. N. de Foz Côa, num tacho em lume vivo, a peça de carne temperada de sal, volteada para caramelizar, e logo o lume no mínimo, o tacho tapado, às vezes um golinho de água. A meio do processo uma cebola inteira pequena. Mais nada. Quem assim a fez tem a minha escola que é, em geral, para carne, peixe, marisco de qualidade, salvaguardar o seu sabor, com uma rigorosa ascese de temperos, tantas vezes apenas sal. No entanto, há excepções de mais para que esta ideia se me torne uma regra. Umas vezes gosto assim, outras, assado, desde que os temperos não escondam o gato da história da lebre que se safou de ser comida

Isto vem a propósito da ideia que tamanha larica me deu e que prometo brevemente pôr aqui, realizada. Umas quatro fatias de carne com 2 mm de espessura, barradas com o molho já meio gelatinado e empilhadas umas sobre as outras. Depois, por cima, mais molho. Vai ao frigorífico até ficar bem frio. Pensarei na altura como compor o prato.

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terça-feira, julho 25, 2006

Para precisar o bacalhau abaixo

Faltou-me dizer que as batatas e o bacalhau, o alho e o azeite se misturam.Talvez se tirasse pelo sentido. Mas assim fica claro.

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Um bacalhau à lagareiro diferente

Fizemos este bacalhau em Campia, numa patuscada de amigos, sob um telheiro de alfaias agrícolas, acompanhado de americano (morangueiro) gelado, um refresco que pode beber-se quase quanto se queira. Disse refresco, não disse vinho, embora tenha sido feito de uvas “tal como a videira o deu” e no lagar ali mesmo.

De casa do anfitrião vieram as pequenas batatas assadas no forno, com casca e só com sal, e o bacalhau que tínhamos comprado, pesava mais de cinco quilos. Dessalara dois dias na correnteza da água, que vinha da mina para o tanque, e agora estavam ali os lombos menos altos, já dourados das brasas.

As batatas depressa levaram um murro cada uma, no meio de alegria e do morangueiro, e pusemo-nos a migá-las para um alguidar, já sem tanta euforia. Quentes como vinham, migá-las, do tamanho da unha de um dedo mindinho e à mão, não era pêra doce. O mesmo fizemos ao bacalhau. Picámos, miudinhos, dentes de alho com fartura. De casa já tinham chegado os pimentos verdes assados, a broa, as azeitonas galegas, o garrafão de azeite.

Juntamos os alhos e azeite às batatas e ao bacalhau migados. Mexemos tudo. Tornámos e tornámos a pôr mais azeite e a mexer. Nunca vi bacalhau com tanta sede como aquele. Finalmente sentimo-lo satisfeito.

Éramos uns sete ou oito e fomos para a mesa: duas tábuas de andaime sobre uns tijolos, duas toalhas, que uma não chegava. Aquela não era uma casa de luxos. De luxo estava o petisco, com as azeitonas galegas, os pimentos e a broa. Garanto: até hoje não comi bacalhau à lagareiro que me tivesse sabido tão bem.

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domingo, julho 23, 2006

Morcela burlesca



(...)

La ensalada y salpicón (1)
hizo fin: ¿qué viene ahora?
La morcilla, ¡oh gran señora,
digna de veneración!

¡Qué oronda (2) viene y qué bella!
¡Qué través y enjundia tiene!
Paréceme, Inés, que viene
para que demos en ella.

Pues, sus, encójase y entre
que es algo estrecho el camino.
No eches agua, Inés, al vino,
no se escandalice el vientre.

Echa de lo tras añejo, (3)
porque con más gusto comas,
Dios te guarde, que así tomas,
como sabia mi consejo.

Mas di, ¿no adoras y aprecias
la morcilla ilustre y rica?
¡Cómo la traidora pica;
tal debe tener de especias!

¡Qué llena está de piñones!
Morcilla de cortesanos,
y asada por esas manos
hechas a cebar lechones.

El corazón me revienta
de placer; no sé de ti.
¿Cómo te va? Yo, por mí,
sospecho que estás contenta.

(...)

Baltasar del Alcázar, excerto de Una Cena, in Obra Poética, Ediciones Cátedra, Madrid, 2001. Também aqui, completa.

Notas: (1) Uma espécie de salada, com carnes ou mariscos picados, temperada com azeite, vinagre, água, sal, cebola e pimento verde e vermelho muito picados. (2) Inchada. (3) Diz-se do vinho velho.

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terça-feira, julho 18, 2006

Uma sopa só sonhada

Hoje sonhei com uma sopa negra, que agora trago das profundezas de um sono regalado, quem sabe se por me libertar de recalcamentos ocultos. Talvez por associação com a delícia catalã que é o arroz negre




Para quatro pessoas: medir a água de um kg de mexilhões abertos num tacho. Sobre este estofado, a que se juntou ¼ de pimento verde, alhos e um pequeno molho de coentros, deitar água suficiente para, com a água dos mexilhões, perfazer 1,2L. Cozer aqui uma posta de 150 gr de tamboril e 8 camarões um pouco mais que médios até ao ponto de cocção óptimo, que é exactamente quando deixam de estar crus (La Palisse tem sempre razão...).

Retirar e limpar o peixe e os camarões de restos de estufado e passar o caldo pelo coador chinês. Reservar em sítio morno o peixe dividido em quatro pedaços e as gambas sem casca, mas com cauda e cabeça Juntar a água dos mexilhões ao caldo obtido, e perfazer os 1,2 l com água se necessário.

Adicionar tinta de chocos até o caldo ficar negro e deixar levantar fervura. Esmagar ligeiramente dois dentes de alho, juntá-los sem casca ao caldo, que deve ferver dois minutos ainda.


Em cada prato, a um dos lados, pôr ½ fatia de pão alentejano ou, não havendo, de pão de segunda com 1,5 a 2 cm de altura, conforme a profundidade do prato. Deitar nele o caldo negro estritamente indispensável para esconder o pão. Colocar, sobre a fatia assim oculta, 4 ou 5 mexilhões grandes sem casca, o pedaço de tamboril, os dois camarões como disse, 3 ou 4 choquinhos grelhados, e enfeitar com uma ou duas tiras pequenas de pimento vermelho assado. Polvilhar a sopa e os adereços com coentros picados.

Se algum dia fizerem esta sopa só sonhada, tenham cuidado ao levar os pratos para a mesa, não vá estragar a ilhota colorida com uma maré negra fatal. A imagem da sopa foi desenhada com o Adobe Photoshop.

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segunda-feira, julho 17, 2006

Gaspacho com o seu granizado e um toque alentejano de presunto e coentros

Estava eu em pleno trabalho de criar este gaspacho, quando, num intervalo, leio num blogue espanhol de culinária sobre o concurso HMEC #1, cujo logotipo repito. Como acho divertida esta iniciativa, não hesito em entrar no concurso com uma das mil variações que o gaspacho permite, tal como em Portugal o bacalhau. É evidente que um outro tipo de sopa fria permitiria um maior brilho, eu sei, mas não vou criá-la só para concorrer. Um gaspacho ou um consomé frio de perdiz de escabeche para mim valem o mesmo neste caso. Mas já estou a imaginá-lo e às cores necessárias...

Posto isto, o gaspacho dividiu-se em três fases:

1 – Elaboração de um fundo de presunto, com ossos e carne do mesmo. Coze-se lentamente os ossos e a carne em água com cebola, alho francês, cenoura, salsa, tudo metido em frio.

Ao fim de umas horas, coa-se, desengordura-se e reduz-se o caldo, e conserva-se, congelado, nas cuvetes do gelo.

2 – O gaspacho propriamente dito faz-se como todos os gaspachos de tomate do tipo andaluz. Triturei no mixer os seguintes componentes:

Tomates bem maduros (com pele e sementes), cortado em pedaços – 1 kg
Pimento vermelho em 2 ou 3 pedaços – 50 g
Pimento verde, idem – 50 gr
Parte branca do alho francês às rodelas - 120 g
Pepino sem casca – 60 g

A que fui juntando:

Azeite extra virgem de alta qualidade – 60 ml
Vinagre de Xerês – 60 ml
Massa de pimentão – 2 colheres de chá cheias.

Passei tudo pelo coador chinês para outro recipiente. Com a ajuda de uma espátula e de 800 ml de água, esgotei bem a massa. Já na posse do caldo coado, entrou então o seguinte:

Sal – q.b.
Açúcar – 1 colher de sopa rasa
Vinagre de Xerês – 20 ml
Fundo de presunto – 4 cubos.


O caldo final rendeu 1,6 l, dos quais reservei 0,400 l

Postos de parte estes 400 ml, juntei aos 1.200 restantes

Miolo de pão duro, ralado finamente na picadora – 80 gr

Misturei bem e pus o gaspacho no congelador.

3 – Adereços (a terceira fase)

Presunto – algumas pequenas fatias finas
Coentros picados muito miudamente
Granizado de gaspacho - 400 ml de gaspacho e uma clara batida em castelo firme.

Num recipiente baixo e largo, levei os 0,400 l de gaspacho a começar a congelar. Nesta altura juntei-lhe as claras batidas, misturei levemente e levei tudo a congelar. Quando começou a ficar duro, tornei a misturar, mexendo. Repeti esta operação x vezes até as claras terem absorvido completamente o gaspacho. Deixei endurecer um pouco mais.

Bati o caldo do gaspacho com a varinha mágica para o miolo de pão ficar totalmente despercebido.

Coloquei o gaspacho gelado no prato, duas boas colheradas do granizado que ficou a aflorar. Sobre o granizado, umas isquitas de presunto e os coentros picados como na imagem.

As variações do gaspacho andaluz vulgar residem na troca da cebola e do alho por alho francês e nas quantidades menores de pimento e de pepino, com o que consegui um gaspacho bastante mais suave. Os adereços também fizeram a diferença: o granizado manteve a sopa gelada, é crocante e ajudou a matar o calor insuportável que tem estado. Os coentros e o presunto, porque o gaspacho alentejano leva presunto e os coentros são a erva aromática que mais distingue a cozinha do Alentejo.

Este ligeiro aportuguesamento do gaspacho, via Alentejo, fez-me lembrar que, até à reconquista, todo o sul da Península Ibérica era o Al-Andaluz, e que Al-Mu'tamid (séc. XI), nascido em Beja, foi poeta e rei de Sevilha e também califa de Silves, de quem deixo um dos mais belos poemas.

EVOCAÇÂO DE SILVES

Saúda, por mim, Abû Bakr,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se deles a saudade
é tão grande quanto a minha.
saúda o Palácio dos Balcões,
da parte de quem nunca o esqueceu,
morada de leões e de gazelas
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas opulentas
e tão estreitas cinturas.
moças níveas e morenas
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
como lanças escuras.
ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio,
preso nos jogos do amor
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
enquanto o tempo passava...
ela me servia vinho:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca.
tangia-me o alaúde
e eis que eu estremecia
como se estivesse ouvindo
tendões de colos cortados.
mas se retirava as vestes
grácil detalhe mostrando,
era ramo de salgueiro
que me abria o seu botão
para ostentar a flor.


Al-Mu'tamid - Poeta do Destino, introdução, tradução e selecção de Adalberto Alves Assírio & Alvim, Lisboa, 1996.

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sábado, julho 15, 2006

Um restaurante em Montemor-o-Novo


Com o calor, é impossível pensar em cozinha. Amanhã talvez faça uma novidade. Entretanto, jantei ontem no Restaurante Bar Alentejano, em Montemor-o-Novo, a uns quatrocentos quilómetros daqui. Que saudades tenho já daquela terrina de gaspacho gelado! Fazia-o agora tal qual, mas nunca me saberia do mesmo modo. Depois, foram uns chocos grelhados, de lado um montinho de coentros e outro de alho picados, duas meias batatas cozidas que não comi, fatias de tomate pequeno. Água muito fresca, e mais nada.

Já não é a primeira nem a quinta vez que lá vou. E, se assim é, recomendo-o. Preço moderado, longe do exagero de certos restaurantes de Montemor sem razão para isso, que seria a de terem melhor cozinha, melhor serviço e mais hospitalidade.

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quinta-feira, julho 13, 2006

Salpicão em azeite: uma dupla vantagem


Os salpicões da imagem acima são oriundos da zona da Serra do Montemuro e seus contrafortes, a norte de Viseu. A carne é vermelho-escura, atravessada por gordura, como se vê nas imagens, e exala um perfume divino, se os deuses tivessem iguarias destas. Quem estiver interessado neles, escreva-me nos comentários ou por e-mail (à direita, no cimo, na posta restante). Não os vendo: posso procurar onde os vendem na sua região.


Como ando com a mania das conservas - isto é por ondas -, pensei que seria bom pôr salpicões destes em azeite. Não é coisa nova, eu sei. Já será novo cortá-los em rodelas de 3 mm de espessura e acondicioná-las em azeite, dentro de frascos como o da imagem. As conservas cárnicas, em frascos ou não, são uma tendência forte, como pude ver em Março passado no Salón Internacional Club Gourmet.



Penso que, a fazerem-se conservas de carne ou do que for, se deve ganhar algo com isso, de contrário temos a congelação e poupamos trabalho. E esse ganho são os sabores diferentes que conseguimos e a melhoria dos sabores originais (estou a lembrar-me dos rojões conservados em banha e do confit de pato). E aqui ganha-se não só um sabor diferente no salpicão, como o azeite, ao fim de três semanas, tem um aroma intenso ao enchido, e ainda obtemos algo que nos regala o olhar.



Com o azeite podemos fazer ovos estrelados, mexidos, em omelete, podemos perfumar saladas e o mais que a nossa imaginação invente. Será escusado dizer que, tal como o salpicão, o azeite deve ser de primeira qualidade. Fiz esta conserva com azeite que tenho, do Douro (V.N. Foz Côa), de 0,3º de acidez.

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quarta-feira, julho 12, 2006

A compota de pêras

Conforme escrevi há alguns dias, disse que tinha iniciado uma compota de pêras de Castel, sem estar certo se sairia bem ou não. Saíram como nunca fiz ideia que saíssem, muito aromáticas no fruto e na calda, e logo alguém me disse que ligariam muito bem com natas batidas, no que concordei. Agora ando a magicar numa sobremesa que leve as pêras, a calda, as natas, forçosmente uma base de bolo, de génoise ou de outro. A seu tempo virá, há que deixar amadurecer as ideias, que as pêras estão seguras nos seus frascos, com um vácuo mais forte que o da própria fábrica, quando os encheram pela primeira vez.

Nas imagens ao lado, pretendo mostrar a evolução da calda e da cor das pêras, do 2.º dia ao 8.º, tendo a compota descansado no 7.º dia (isto nada tem de bíblico...) e acondicionada no dito dia oitavo, esta do dito dia oitavo sou eu com exercícios de estilo, risos.

Descobri que as pêras, tendo sido compradas em Espanha e aí denominando-se de Castel, se chamam por cá pêras pérola.

Este blogue dá conta, para a pêra em causa, de nada mais que cinco variedades e sua origem:

Pérola – Alcobaça; pérola amarela - vário locais e produtores; pérola branca – Minho; pérola de Leiria – Leiria; pérola parda - Cômoros de Cima, Ansião. Nos comentários, alguém diz que esta pêra é muito aromática, muito mais que a pêra rocha, confirmando uma das razões por que a escolhi. A outra foi o seu pequeno tamanho.

Lembro este método, que faz realçar o aroma mais do que o dos próprios frutos em fresco. Muitas vezez inventamos a pólvora. Nunca vi, porém, em tantos livros que tenho corrido e em páginas da Internet, um modo sequer parecido de preservar, em compota e com igual efícácia, os aromas do fruto e a sua integridade, que assim ficam presos, como nesse frasco que serviu originalmente a mermelada de naranja amarga.

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terça-feira, julho 11, 2006

Uma sopa de mexilhões

O curioso é que as sopas que mais tenho gostado de imaginar e realizar são de peixe ou de marisco, modificadas de outra sopa, feitas baseadas num prato de garfo e faca, inventadas, com o devido desconto que, nas coisas de cultura, nada é invenção pura. Aqui, o termo cultura tem o seu significado mais amplo, a cultura da alimentação, que se insere na dos costumes, os do nosso país e de países alheios que conheço, os livros que vou folheando, as voltas pela blogoesfera, o googlar pela Internet



Isto a propósito de a ideia base para esta sopa me ter ocorrido da fideua e da paelha, que conheço bem de restaurantes espanhóis, em trabalho e em férias, e de as fazer. Pensei que sairia bem e diferente uma sopa tendo por suporte os temperos da paelha, mas, como a fideua, com massa e só de marisco e peixe (neste caso apenas mexilhões).



Para quatro pessoas:

Um tomate maduro e mais que médio
Meia cebola picada
1 alho francês cortado às fatias
1/3 de pimento verde partido aos pequenos pedaços
2 dentes de alho esmagados com a casca
Sal
½ colher de sopa de pimenta preta em grão
Azeite
1 quilo de mexilhão mais ou menos (uma embalagem de rede)
Ervilhas congeladas, duas mãos mal cheias.
Massa semelhante à que se vê na imagem (a que empreguei é italiana) – 100 gr
Salsa
1/2 pimento vermelho assado e pelado, cortado às meias tiras
Salsa picada
Pó amarelo para paelhas e para a caldeirada de enguias de Aveiro (não é açafrão das Índias nem gengibre amarelo). Penso que seja corante alimentar amarelo. Não se escandalize. Não há bolo de pastelaria, que leve ovos, que não o tenha, do creme à própria massa, e o pão-de-ló tão amarelinho da Páscoa, se leva os ovos que deve, não dão cor como a de outrora, quando havia galinhas pelos quintais e capoeiras, a comer ervas e farelos com couve.



Ponha azeite a cobrir ligeiramente o fundo da panela. Refogue a cebola e o alho francês, até aquela ficar transparente, mas nem sequer dourada. Nesta altura, adicione o tomate partido aos bocados, sem lhe tirar a pele e as sementes, o alho esmagado com a casca, o pimento verde partido em pequenos pedaços, a pimenta preta em grão (sem a moer).

Com a panela tapada, deixe estufar em lume mínimo. Junte um gole de água sempre que precise. Lembre-se de que um gole é coisa pouca, se for 30 ml não andarei longe.

Leve os mexilhões a abrir em lume forte, sem barbas e lavados, num tacho tapado e seco. Mal abram, desligue-os, mude-os para um recipiente com a água que largaram e esqueça-os.

Ponha as ervilhas num recipiente de plástico, deitando água a ferver sobre elas, e leve-o ao microondas por três minutos. As ervilhas devem ficar sobre o rijo, mas cozidas e verdes (a qualidade das ervilhas é variável).

Deite a massa em água a ferver com sal e um pouco de azeite. Ao fim do tempo de cozedura indicado no pacote para massa al dente, retire-a para um coador e passe-as por água fria.

Vá vigiando o estufado. Retire os mexilhões da casca e decante a água que deixaram. Meça e complete o 1,2 l com água. Deite sobre o estufado, deixe levantar fervura em lume forte. Tempere com sal só agora. Depois mantenha o caldo a fervilhar por 15 m.

Coe o caldo por um passador chinês, medindo de novo o 1,2 l para outra panela, espremendo bem o que fica no passador do estufado. Se for necessário, complete com água aquele volume. Leve ao fogo de novo. Adicione o pó amarelo. Deixe levantar fervura. Rectifique de sal. Adicione o miolo dos mexilhões, a massa e as ervilhas ao caldo coado. Desligue. Ponha a sopa nos pratos, primeiro com uma escumadeira, dividindo os sólidos, e depois o caldo com a concha, completando os pratos. Enfeite-os com as tiras de pimento vermelho e um pouco de salsa picada. Peça que lhe ponham a sopa na mesa. Já terá trabalhado que chegue se a fizer.

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segunda-feira, julho 10, 2006

Jantar virtual, será que as sobremesas podem ser a refeição #4?

O doce é um pudim-bomba

A composição:

18 gemas, 3 colheres de sopa de vinho do porto velho, 50 g de amêndoa com casca, 500 g de açúcar, dos quais 75 g são para o caramelo.

Deite água a ferver sobre as amêndoas e pele-as quando puder, mas não espere muito Leve-as, já peladas, ao forno pré-aquecido a 180ºC e deixe que aloirem sem nunca se queimarem. Não deixe de as vigiar. Uma vez com cor, ponha-as de lado para que arrefeçam totalmente. Se fizer mais, não se perdem. Guarda-as numa lata ou num frasco. Até dá nervos não podermos parar. São crocantes, ansiolíticas, vingamos nelas
a nossa condição de seres engaiolados pelo progresso. Regressemos ao pudim.

Leve o açúcar ao lume, coberto de água, até que atinja o ponto de pérola (106º no termómetro). Deixe arrefecer.

Se tem confiança nos ovos, abra 18 ovos para um recipiente e, com a ajuda de uma só mão, colha gema a gema, deixando que a clara se lhe escape entre os dedos. Se desconfia do seu bom estado, passe-os, ovo a ovo, por uma chávena e depois pela mão, separando a gema da clara. Vá deitando as gemas noutro recipiente. Bata ligeiramente as gemas, só para as desfazer.

Uma vez frias as amêndoas, reduza-as a farinha fina no 1-2-3, descolando a amêndoa que fica agarrada à parede. Estenda-a numa travessa, desfazendo possíveis grumos e, sem parar de mexer, deite-a em chuva sobre a calda. Junta a esta, já morna, as gemas e o vinho do porto. Mexa até tudo ficar homogéneo. Deite a mistura numa forma de pudim com tampa, a forma previamente passada com o caramelo. Coloque um guardanapo sobre a forma ou um pano branco e, sobre este, a tampa. Dobre as pontas do pano para cima da tampa e leve o pudim a banho-maria para cozer. O pano é para não entrar água. Se puser o banho-maria só a fervilhar, basta a tampa. Estará pronto cerca de quarenta minutos depois. Temos, mais uma vez, a altitude a baralhar tempos e temperaturas. Tire as dúvidas pelo velho método do palito. Desenforme depois de frio para o prato de serviço e regue o pudim com o caramelo que guardou previamente para esta altura.

Este pudim é uma adaptação do Pudim Real, do livro Cozinha Regional Portuguesa, de Maria Odete Cortes Valente, Ed. Livraria Almedina, Coimbra. Substituí apenas a baunilha que indica pelo aroma das amêndoas tostadas. Casam melhor com o do vinho do porto que entra nessa receita. No entanto, o pudim original é muito bom.

E, já que sugerir não custa nada, acompanhe esta sobremesa com um Nieport Colheita 1974.



Quase no fim, a fruta

Comi esta sobremesa no Hotel Empordà, em Figueres, cidadezinha de Girona conhecida pelo museu de Salvador Dali. É um dos templos da cozinha catalã.

À falta de meloa cantaloupe, que é a da imagem, vamos pela mais vulgar em Portugal, partida às fatias, a que apenas se cortou a polpa na sua parte madura. Fazemos uma calda de açúcar até o seu primeiro ponto, ponto de espadana, aqui aos 99ºC, à beira-mar, a 101. Retira-se do lume e adicionam-se logo à calda três bons ramos de hortelã e, arrefecendo, um pouco de sumo de limão filtrado, o suficiente apenas para que mal se sinta. Leva-se ao frigorífico para ficar fria. Corrigimos o limão se necessário, porque o frio corta-lhe a evidência (discreta) do sabor. Dispõem-se duas ou três fatias de meloa refrigerada por prato, regam-se com a calda perfumada, enfeita-se com um olho de hortelã e serve-se.

E chegamos ao fim de tão despudorado jantar. Temos ainda o café, que deve passar-se duas vezes no balão (outro truque). O balão à mesa aconchega as pessoas em volta dele.

Já não falo mais, de conhaques, de licores, e muito menos de cigarrilhas Romeo y Julieta. Não há luar que se veja depois de um jantar destes. Romeu e Julieta vão dormir de costas um para o outro, sem ais nem tragédia, quotidianos.

Um jantar virtual,
a minha tábua sonhada de queijos
ou um lautíssimo repasto #3

Aqui está uma injável tábua com os queijos de que mais gosto. Deu-me bom trabalho pô-la ordenada e assim bonita. E também andar à procura dos queijos. Nunca os tinha visto assim juntos na minha vida.

Os primeiros quatro, ou os primeiro três e mais uma apresentação, são os meus preferidos de topo, por ordem alfabética e sem distinção de preferência. Diria que são queijos absolutos quando no máximo da sua qualidade.


É uma tábua que só se reuniria na Primavera, devido ao Queijo da Serra de entorna e ao de Azeitão, se não pudéssemos congelá-los. Põem-se directamente na arca ou no congelador, depois de se elevar uma hora antes para o máximo a potência do aparelho. Para descongelar, deve ser no exterior e dura no mínimo 24 horas para o queijo da Serra, e 10 ou mais horas para o de Azeitão. Se não tiver paciência, pode dizer adeus aos queijos. É na descongelação lenta que está o segredo. Totalmente descongelados e à temperatura ambiente (18-20ºC), põem-se na parte média do frigorífico e retiram-se duas horas antes de os servir.

Em baixo, os queijos de que gosto bastante, todos são eleitos, nestes uns mais que outros. Gosto igualmente de queijo flamengo de qualidade. No entanto, como nunca me pareceu ir bem depois de o almoço ou do jantar, não o nomeio aqui. É mais um queijo de pequeno-almoço e de lanche.

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A legenda das imagens. Clique nos nomes para ver mais.

1 - Parmesão
2 - Roquefort (Papillon)
3 - Serra, de entorna (Celorico da Beira, Fornos de Algodres, Gouveia, Seia e Mangulade)
4 - Serra Velho (idem)
5 - Azeitão
6 - Camembert de leite cru (Lepeti)
7 - Queijinhos de Cabra do Alentejo, duros
8 - Queijinhos de Évora, idem
9 - Idiazabal duro (fuerte)
10 - Manchego
11 - Picante da Beira Baixa
12 - Sanserre
13 - S. Jorge, com 4 meses de cura, como mínimo.
14 - Serpa, de massa mole.



Comece dos mais brandos e suaves para os mais intensos, comece no Parmesão, passe ao Camembert e ao Serra de entorna e vão acabando no Picante da Beira Baixa e feche com o Roquefort daquela marca, que é a melhor que conheço (Modelo e Continente: o Belmiro de Azevedo não me paga por isto, bem pelo contrário). Acompanhe com pão bom e um Quinta de Carvalhais Touriga Nacional, Dão, solar de tão rica casta. 1994, 1995 ou 2000, o que tiver ou, com sorte, apanhar.

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