Peixinhos do rio
Este é o alto Mondego, bem longe ainda da Figueira, vagaroso entre as terras de Fornos de Algodres, no coração da Beira Alta. Vim muitas vezes de propósito a este restaurante comer peixinhos do rio em escabeche, enquanto olhava as águas a passar como um tempo luminoso. Estava-se bem, longe do mundo, sempre numa mesa junto da janela. Mas veio a lei cega e acabou com os peixinhos, como (quase) acabou com o queijo da serra artesanal, está tudo em queijarias, e agora é mais o leite de ovelhas de Espanha do que o leite das churras portuguesas que entra nas coalhadas. A bem da higiene, com que tenho de concordar, mas afinal nem sempre a bem da qualidade. Não me parece aceitável e, menos ainda, inteligente fazerem-se leis com olhais de mula na cabeça, ou seja, que fitem só em frente, sem olhar para o lado.
Na berma, para trás, relegadas para o passado, que cada vez mais é a agonia da identidade de um povo, ficam coisas que dificilmente tornaremos a ver, os peixinhos, o queijo da serra como aquele que comia e que ainda vou arranjando clandestinamente, a aguardente bagaceira que agora se destila em alambiques escondidos, aguardente que tem um forte aroma a chá, sobre a qual costumo dizer, quando é da legítima, que só a troco, no mínimo, por um whisky de malte de 15 anos, se for bom, por uma aguardente velha da nossa que seja excelente, por um conhaque ainda melhor.
Há dias, tornei ao restaurante, quarenta quilómetros para lá, quarenta para cá. Em vez dos peixinhos a que ia e que soube então não haver mais, comi bacalhau assado e umas batatas a murro enormes, mas deliciosas, a nadar em azeite de muito boa qualidade, um modo dentro da lei de se iludir o casal antipático das garrafinhas. Um restaurante tosco? Um restaurante de peixinhos do rio longe de tudo.
Até os fiscais da ASAE haviam de lamber os beiços e, depois de os limparem civilizadamente com um guardanapo de papel, encantarem-se com o vinho branco em jarra da imagem, naquele meio-dia de Primavera temporã.
Etiquetas: Miscelânea
4 Comments:
O meu avô, e o meu pai depois dele, produziram muita desssa bagaceira com "sabor a chá"... Em belos almabiques de cobre, vedados com miolo de pão amassado, de onde corria por um fio de algodão o líquido misterioso para o garrafão. Passei muitas horas à volta da fogueira, que era meticulosamente controlada, a ver como se fazia.
Como o Avental, também dispenso que me tratem assim da saúde, prefiro ser eu a fazê-lo!...
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Às vezes ainda me aqueço junto do lume "clandestino" de um ou dois desses alambiques, Paula, não meus, claro. Tudo caminha é para uma igualização por baixo, pelo mau. Fazem-nos crer que determinadas marcas de bagaceira são melhores que as aguardentes que ainda se fazem como antes da proibição, uma nova espécie de lei seca, mas ao contrário: quem em Portugal está autorizado a fabricar (é o termo) aguardente de bagaço fabrica quase sucedâneos, para não dizer outra coisa.
Fica apontado, Copo de 3, obrigado.
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