quinta-feira, setembro 07, 2006

Crónica em honra do Vegallana

Vieira da Silva, História Trágico-Marítima,
óleo sobre tela, 1944.

Costumo frequentar este restaurante perdido na planície de Salamanca, ao km 289 da estrada Portugal-Burgos, a famosa Ruta de los Portugueses, do tempo em que os emigrantes, sem dormir e sem prática de condução, atravessavam Espanha de lés a lés, deixando um rasto semelhante ao da HistóriaTrágico-Marítima, todavia sem que ninguém, até agora, se tivesse dedicado semelhantemente a fixar as aventuras e desventuras de um povo em fuga para França, acossado pela miséria e pela guerra de África.

É um restaurante de hotel de estrada, familiar, muito castelhano, com um excelente cozinheiro e com um serviço atento sem excessos, eficaz, profissional, característica aliás tão comum em restaurantes médios espanhóis quanto pouco frequente é em restaurantes portugueses. Para um nível semelhante de cozinha e bem-estar (nem falo do serviço), os restaurantes portugueses terão de classificar-se como médio-altos, onde pago o dobro.

A sala é confortável, sem luxos. Tem sempre excelente lombo de novilho, tenro, maturado no frio para chuletones e entrecotes. Às vezes, apanha-se a preciosidade de uma carne longamente maturada, com cerca de um mês, da cor do vinho no copo da imagem abaixo. O rabo de toiro estufado é uma delícia, a pá de borrego assada, o borrego estufado se o apanhar. Costuma haver peixe fresco, normalmente pescada grande da Galiza. Tem, como entradas, uma excelente paella, uma feijoada com algum rabo de porco, orelha e chouriço, que fica entre a nossa e uma sopa e que sabe bem pela diferença da mão de quem a faz; às vezes, callos con garbanzos (dobrada com grão), sopa de cozido, outra maravilha, e mais viandas.

Ao entrar, fizeram-me a festa do costume, falamos todos, Teo, os empregados, eu com eles, eles comigo. Já passava das três da tarde. Bebi ao balcão um Xerez, e Teo, um dos herdeiros do fundador, homem sereno, de nariz aquilino e ar sábio, que tantas vezes vi, antes de morrer, sentado no alpendre da entrada, a fumar o seu eterno puro , o olhar perdido na lonjura, Teo, ia dizendo, pôs-me, para acompanhar o Xerez, algo surpreendentemente bom que não conhecia: uns três ou quatro pedacitos de probadura, que não é mais que carne frita de chouriço de porco preto, antes de ensacar, cortada mais miúda do que a nossa. Face ao meu espanto, disse-me que ia muito bem com ovos estrelados. E foi o que, sem hesitar, escolhi para entrada. Para segundo prato, um entrecote (repare-se na cor da maturação já avançada e na perfeição da cozedura), era só encostar a faca de tão macio, tudo acompanhado do vinho da casa melhor, Taurino 2004, de região junto da D.O. Ribera del Duero, um tinto espesso, poderoso, com bastante Cabernet Sauvignon e um final de boca suficiente, muito fechado no nariz, óptimo para durar anos e anos.

Já não tinham a delícia, a raridade entre as suas sobremesas: aquilo a que chamam flan de turrón, algo parecido com o pudim de abade de Priscos, a que juntam torrão de Alicante moído. Escolhi um pudim flan, o da imagem. Honesto, bem feito, gelado e abundante. Depois veio um café cortado e um licor de ervas gelado, que é sempre oferta da casa.

Tudo isto por 14,5 euros.

Hoje, com a auto-estrada de Castela a substituir a velha Ruta de los Portugueses, pode afirmar-se que o Vegallana é um restaurante perdido na planície da Meseta. No entanto, já enchera as suas vinte e tal mesas quando cheguei.

E, no fresco do ar condicionado, era uma paz olhar, pela janela, as azinheiras abrasadas e a planura castigada de sol, sem vivalma, e sentir circular no sangue os 14,5º do vinho e o bom que, muitas vezes, é existir.

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