segunda-feira, julho 03, 2006

Sopa de Cherne

As quantidades aqui indicadas são para quatro a cinco pessoas. Não se admire com tanta exactidão no caldo necessário e na cozedura do peixe. Às vezes, não poucas vezes, isso em cozinha é fundamental. A imagem não é desta sopa. A cor é semelhante.

Pique, para a panela, 2 tomates médios e bem maduros, sem se aborrecer com a pele e as sementes, corte um alho francês às rodelas finas e mande-o para junto do tomate. Faça o mesmo a uma cebola em meias rodelas finas, a dois dentes de alho cortados às lâminas e a uma cenoura ralada como para salada. Deite dentro um ramo de salsa sem ter pena dela, ½ colher de sopa de orégãos secos, meia folha de louro, uma colher rasa pimenta preta grosseiramente partida no triturador ou no almofariz, por fim um pequeno gole de água. Mexa tudo em lume forte sem parar até que esteja quente. Mude para o bico mais fraco e baixe o lume para o mínimo, tape a panela, e deixe que tudo vá estufando devagar por 2 hora ou mais. Vigie para que não se agarre. Quando estiver a ficar seco junte um gole de vinho maduro branco de qualidade regular e pouco ácido (comuns das cooperativas do Douro, da Península de Setúbal, do Alentejo). Os vinhos das adegas cooperativas, se quase sempre não são grande espingarda, são honestos.

Tem-se a ideia erradíssima de que o vinho branco para cozinha pode ser do imbebível, e quanto mais barato, melhor. Se a tem, varra tal ideia da cabeça para todo o seu sempre, faça juras e cruzes na boca para que nenhum vinho de pacote ou de garrafa manhosa lhe entre em casa. Mistelas feitas na maior parte com mosto de uva esterilizado, sabe-se lá se com açúcar, seguramente com leveduras, e ácidos cítrico e tartárico com força para que se conservem são a desgraça, o Diabo e a peste que lhe entra em tachos, panelas, caçoilas e sertãs.

Temos então pronto o estufado de vegetais base minha para sopas e não só, mudando de temperos, retirando ou adicionando um ou outro vegetal. Adicionamos-lhe água, 300 ml exactos por pessoa. Exactos, é uma forma de dizer. Pode falhar, para mais ou para menos, 1 a 2 ml, se por acaso tiver a pachorra de conferir a água numa medida de laboratório, coisa que, em cozinha, só passaria pela cabeça de alguém, se tivesse bebido um pacote de branco martelado.

Conferimos a olho o nível de líquido na panela para, mais tarde, evaporado, o repormos como estava. Esta minhoquice de exactidão na água deve-se à prática mais que correcta, correctíssima, de que trabalhando para um número dado de pratos, não estamos a diluir odores e sabores em caldo inútil. Um prato por pessoa (300 ml) chega bem. Se come por dois ou três, tem de contar com mais um ou dois pratos na panela e outros tantos na mesa posta e respectivas cadeiras.

Deixemo-nos de apartes, que a prosa vai longa. Fervido o caldo com um fio de azeite durante 15 minutos, coe tudo por um passador chinês para outra panela, espremendo o que foi o estufado, para que largue todo o caldo. Meça-o de novo a olho. Coloque a nova panela ao lume, corrija de sal, deixe levantar fervura e coza na sopa duas postas médias de cherne (com um dedo de altura), até dez minutos exactos depois de levantar novamente fervura. Retire o peixe de imediato e reserve, depois de o limpar de peles e espinhas, procurando deixá-lo em grandes pedaços.

Adicionamos ao caldo dois ovos mal batidos e mexemos um pouco para que fiquem em farrapos grosseiros. Repomos a água em falta, previamente misturada com uma colher de sopa de pimentão doce e aromático. Espesse um nada o caldo com Maisena (fécula de milho) dissolvida em água fria.

Coloque em cada prato uma fatia de pão alentejano ou, na sua falta, de um pão (vagamente) parecido. Distribuído o cherne sobre as fatias, deite o caldo por cima e enfeite com um pisco de salsa picada. É só mandar levar os pratos para a mesa. Mande, não vá. Muito terão de lhe agradecer esta sopa.

A si e a mim, que esta receita é da minha lavra, não foi copiada nem sequer baseada em sopa nenhuma, senão em algum aroma do sul e no seu pão. Outras tenho originais, seguindo o mesmo estufado, com outros temperos e acabamentos, nomeadamente um velouté de lagosta, com natas e perfumado de xerez.

Se a sopa de cherne é de cair para o lado, a de lagosta é de tocar no céu. A boa cozinha, o prazer dela também parece levar-nos aí. E como temos o dever da alegria para connosco mesmos, um dia que eu esteja para aí virado revelo o segredo inteiro

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12 Comments:

At 3/7/06 16:52, Blogger colher-de-pau said...

Sopas de peixe são uma maravilha. Sinto-me tentada a experimentar a de cherne. Por enquanto a minha preferida é a de cação, à boa maneira alentejana com o paõzinho e os coentros.
E não diga para substituir o pão alentejano por outro "parecido". Nestas coisas de pão ou se é ou não! (Alentejano, claro está!)

Já agora fiz a sua receita do licor de cerejas... Já está com aquela linda cor vermelha, e o açúcar também já dissolveu. Quando estiver pronto, logo lhe digo o que achei !

 
At 3/7/06 17:17, Blogger avental said...

Colher de Pau, esta sopa é bastante boa, pode fazê-la que não falha. Reconheço que dá trabalho e que saberá melhor no Outono, com os primeiros frios.

Ah, alegra-me a boa nova do licor, outra coisa para o tempo mais frio. Sinto-me como uma formiga sem querer :)

Tem de o provar. Já viu se está bom de açúcar para si?

 
At 3/7/06 17:18, Anonymous Anónimo said...

Agora o d. manuel três is de novo :(

 
At 3/7/06 21:41, Anonymous Anónimo said...

Permita-me uma recomendação: Ao cozer qualquer peixe (bacalhau incluído, claro!!!)nunca deixe que a água ou caldo onde mergulhou o(s) dito(s) para cozedura, levante fervura. A fervura destrói a gordura intersticial e o peixe fica seco...O tempo de cozedura depende, sempre, da espessura da posta ou do peixe inteiro. Mas sempre sem ferver! :))))

Maria Helena

 
At 4/7/06 10:06, Blogger avental said...

Faço mais ou menos isso com o bacalhau, Maria Helena. Como só gasto postas altas para cozer, dou vinte minutos em água acabada de ferver, o lume apagado e o tacho tapado. Fica de facto muito melhor, sai bem às lascas e a gordura intercalar está lá toda.

Embora nunca tenha usado a fervura em cachão para cozer o peixe, penso que a sua dica será bem melhor, a de não levantar fervura ou nem sequer estar no lume, como o bacalhau.

O seu processo, que afinal é quase o meu nas compotas de fruta, deixou-me convencido: a sopa ficará não só a saber mais ao peixe, como o próprio sairá melhor, lascará melhor, conquanto ceda de si mais sabor, penso.

Referia-me a postas de um dedo de altura (2 cm) e o tempo é exactamente o que disse para a altitude a que o cozo: 500 m, 98ºC de ponto de ebulição. Já tentei com 8 e 9 minutos, e restou sangue na espinha. Para o seu método será mais tempo, dependendo também da grossura do peixe a cozer e da altitude a que esteja.

Sabe, pelo que me lê aqui, que dou toda a importância às temperaturas, razão acrescida para lhe agradecer. Deve ser uma excelente cozinheira :)

 
At 4/7/06 16:26, Blogger Paula said...

Gostei muito, quer da sopa, quer da prosa.
E a indicação que dá para o vinho é mesmo muito importante: pergunto-me sempre como é que pessoas que se prezam de cozinhar bem utilizam autênticas zurrapas na cozinha...

 
At 4/7/06 19:02, Blogger avental said...

Paula: a sopa é seguramente melhor que a prosa :) Não é forçoso ser de cherne. Pode ser de outro peixe branco. Nem tem de ser fresco. Pode ser congelado. Não é uma sopa cara (o cherne fresco é caro, como sabe). E parece mais trabalhosa do que realmente é.

Ah, as zurrapas estragam tudo. Muita gente chama-lhe vinho de cozinha, ainda por cima. Uma das razões de deitarem tudo a perder é os ácidos adicionados. Azedam onde entrem.

 
At 4/7/06 19:09, Anonymous Anónimo said...

Ilustre Gourmet,

Aceito e retribuo o cumprimento (o excesso de modéstia é pura vaidade):)))

No entanto,ao lê-lo, vejo-me bastante simplória... Tenho sempre muita atenção à matéria-prima e procuro não lhe alterar o sabor, antes realça-lo.
Por exemplo, para mim, o cherne não é dos melhores peixes para uma sopa, do meu ponto de vista. Prefiro espécies do género cantaril (ou cantarilho ou requeime) e rascasso (são da mesma familia Scorpaenidae).
Faço uma sopa de peixe diferente da sua.
Pena não haver "trocas de sopa" no blog :))))

Maria Helena

 
At 4/7/06 21:35, Blogger avental said...

Ilustre M.ª Helena

Eu digo de outro modo: a lucidez sobre si mesmo nunca foi imodéstia.

Quanto aos sabores estamos de acordo. Veja (mais uma vez) que a compota de damascos e a de peras, a de peras a chegar ao seu final, têm mais perfume que os próprios frutos, o que, sem vaidade nenhuma, me parece extraordinário.

Tenho várias sopas de peixe minhas e não só esta, a minha :)

Nesta, mais que só a sopa, quero o caldo, o peixe, o pão, o ovo, os sabores bem casados e a diferenciação táctil e harmoniosa de cada elemento. Isto parece teoria, mas não é.

Não chego a tanto como Gulbenkian, que mandou chamar o cozinheiro-chefe do Hotel Aviz onde comia sempre, para lhe dizer que ele tinha batido os ovos da sua omelete habitual mais três vezes do que o costume :)

Enfim, creio que nunca comi cantaril e o outro nem o conhecia, mas se sabem muito a peixe ou são daqueles com muita gordura não é comigo.

Pensei em dizer-lhe que sou um homem que gosta sobretudo de sabores e cheiros delicados, inclusívé, e talvez sobretudo, no peixe, com as honrosas excepções à regra, mas isso poderia parecer-lhe basófia :))

 
At 4/7/06 22:53, Anonymous Anónimo said...

É curioso citar Gulbenkian e o Aviz para insinuar um preconceito seu.

Creio que confunde delicadeza de sabores e cheiros com relutância em experimentar o desconhecido.

Como associo muito a pintura à gastronomia a minha grande "preocupação" é a harmonia.

Maria Helena

 
At 5/7/06 02:59, Blogger avental said...

Pertence-me o direito de não gostar de sopa de chicharro, ainda por cima conhecendo o seu cheiro a peixum. É-me difícil entender que se possa trocar chicharrão cozido por cherne cozido, a não ser por uma perfeitamente admissível questão de cultura.

Tenho visto muitas "coisas novas" em restaurantes, associações no mínimo bizarras, aplaudidas como a última das delícias. Estou a lembrar-me, entre outras, daquela misturada de carnes grelhadas (vaca, porco, sei lá se borrego) com marisco (camarões, amêijoas, percebes e até lagosta), chamada em geral e bacocamente Terra e Mar.

E no entanto não vou dizer a quem, feliz, come daquela promiscuidade, não vou dizer que estão a ser levados por uma moda pimba, não tenho o direito de insinuar-lhes que ouçam outra coisa em vez de Quim Barreiros.

Cada um existe no seu mundo, e muitos, infelizmente a esmagadora maioria, passa neste único sem poder distinguir que estão a aldrabá-los. Nunca lhes permitiram comer mel, metem a mão no pote e lambuzam-se com melaço de beterraba. Era preciso e justo que os responsáveis pela Educação e pela Economia e Trabalho neste país lhes tivessem inculcado a noção do bom gosto, que tivessem sentido e percebido a distância enorme que vai de uma coisa tida como arte à arte verdadeira.

Enfim, concordo consigo se me fala desse "desconhecido". Sou incapaz de comer a sardinha com pão-de-ló que, oportunista e parolamente, o dono de um restaurante daqui apresentou na televisão como especialidade regional. Só não disse que essa exaltada receita era do tempo do volfrâmio, quando se andava com cinco canetas no bolso de fora e se julgava barato de mais o pão para acompanhar a sardinha salgada da fome, optando alguns então por substituí-lo por pão-de-ló.

Entre outras maiores, a cozinha para mim é uma paixão, sobretudo a de experimentar novos modos e ligações, de aprender e também de criar, ao contrário do que afirma, no mínimo pouco clarividente. Está tão escarrapachado no blogue que até um cego o veria.

Creia que a sua reacção absurda
não me apanhou desprevenido. Já a esperava, e aqui a temos, enfim. Sempre me pareceram amarelos aqueles seus sorrisos excessivos.

E depois de tanto sorrir, afinal ninguém aqui lhe cheirou uma receita. Não há quem cozinhe sob a laje de uma campa, embora alguns me pareçam pensar que sim.

Cumprimentos

 
At 19/4/09 20:32, Blogger Tia Maria said...

Experimentei a receita e adorei. Embora não tenha muito o hábito de seguir receitas á risca, neste caso, depois de ler a receita, resolvi fazer tudo tal e qual. Só que usei congro em vez de cação porque não consegui arranjar. Tambem ficou muito bom.
De qualquer maneira, 5*. O meu marido lambeu-se todo e como é muito timido, só repetiu 3 vezes.

 

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