Mil-folhas de maçã e moira com a sua pele crocante, e uma entrada que não é de comer.
Ontem dei-me folga ao trabalho que normalmente me ocupa tanto que só me deixa tempo para chegar a casa, comer qualquer coisa e adormecer. Dizia meu pai que pior que trabalhar muito é não fazer nada. Se é certo que isso se encaixa também em mim, é comum eu ter bastantes saudades do dolcissimo far niente.
Às vezes olho os montes e os pinheiros da janela do meu gabinete, e sorrio quando o sol aparece. Mas faço-o brevemente, que logo a luz do ecrã me chama ao raciocínio com os seus números. No fundo, sei que o tempo de trabalho é mal empregado, que devia ter coragem de agarrar em mim e, como no tempo da Beat Generation, percorrer as estradas do mundo à boleia, e um dia voltar à minha Ítaca, como aconselha Kaváfis no seu poema homónimo muito celebrado (finalmente a ligação bem feita):
”(...) Mas não apresses absolutamente nada a tua viagem.
Será melhor que ela dure muitos anos
para que sejas velho quando chegares à ilha,
rico com tudo o que encontraste no caminho. (...)"
Bom, adiante.
Esqueço-me de que este blogue é de coisas de sustentar o corpo, embora nem só de pão (e de conduto...) devamos viver. Dispus pois de algum tempo da minha saborosa folga e fiz o que disse que ia fazer, embora sem o que depois me pareceu excesso.
Cozi o que restava da moira. Descarocei e descasquei a maçã Golden da imagem sob estas linhas. Parti-a em rodelas de 5 mm de espessura e temperei-as de sal. Reduzi, com um rebento de hortelã, o caldo de cozer o enchido, porque me soube a sopa de cozido à portuguesa. Espessei-o ligeiramente com Maizena e reservei. Separei o recheio da tripa que não é de plástico, mas de porco. Piquei o recheio e enrolei dois bocados de tripa em palitos e atei-os folgadamente. Comecei então a montar o mil-folhas, alternando as rodelas de maçã com o recheio do enchido. Segurei a montagem com dois palitos de espetada e levei-a ao forno pré-aquecido a 200ºC, sobre uma folha de silicone, juntamente com os dois pedaços de tripa enrolados. Deixei que assasse. A meio pincelei com manteiga. Uma vez o mil-folhas assado, piquei hortelã miudamente, juntei-a ao caldo com um pequeno gole de vinagre de cidra, e levei-o ao microondas para aquecer. Retirei os rolos de tripa dos palitos e montei o prato como se vê, pondo no tomate um pouco de flor de sal.
A ligação da maçã com a moira é perfeita e também a deste conjunto com aquilo a que, com o seu sabor a hortelã, chamei molho de cozido. A pele estaladiça da moira, melhor que a pele de uma alheira bem assada na brasa, casava entusiasticamente, pelo contraponto de texturas, com o mil-folhas. O tomate, nos antípodas do seu melhor mês que é Agosto, foi muito mais uma mancha de cor necessária à estética do prato que outra coisa. Sabemos bem que os olhos também comem e que o tempo dos tomates doces é o Verão.
Etiquetas: Criações - Carne
7 Comments:
O seu pai tinha razão, mas o far niente é tembém importante para se germinarem ideias e sonhos.
O meu almoço de hoje foi a óptima conserva de lombo de porco, que ensinou a fazer, com as batatas cozidas, que depois ligeiramente salteei na banha, e grelos só cozidos.
Queria-lhe agradecer uma das boas refeições que comi.
PS. não me apeteceu esperar mais tempo, mas os outros frascos ainda vão ficar melhores
Inspirador! Apeteceu-me cozinhar ao ler o texto. Infelizmente estou no escritório :)
uiuiuiuiui... ... ... ui ui...
Marta, quando tornar a fazer os rojões, faça-os da pá, porque saem mais firmes. A pá tem igualmente gordura. Um rojão sem gordura é mais triste que um choupo sem folhas à chuva :)
Os escritórios acabam por ser o nosso problema, Chalabi Red.
João, ponha-se a fazer o mesmo, não é difícil :) Com este prato bebia um vinho novo, de maceração carbónica. Que me diz?
Parece-me uma belíssima dica. vou experimentar mesmo.
saudações
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