Alheira com ovo e grelos
Tudo quanto tenho imaginado e posto aqui, se o imagino, é original, quanto original é possível ser o que criamos. Nada se cria de nada, há todo um substrato em nós a que é uso chamar-se cultura, neste caso cultura gastronómica, feita de experiência e de experiências. A montagem deste prato, por exemplo, tem algo a ver com esta aqui. Mas não é plágio. É uma experiência decorrente de ter visto aquela imagem, de resto muito diversa. Plágio seria apropriarem-se de receitas e imagens minhas e de outros blogues para um livro, cujo chiquisperto "autor" as desse como dele, coisa punível por lei. É certo que também pode haver plágio entre blogues, mas esse é facilmente remediável e não tem intuitos lucrativos.
Usei para a modernização deste comum e saboroso prato tão português: canelones para rechear, uma alheira de qualidade para o recheio, uma colher de chá mal cheia de massa de pimentão, hortelã finamente picada, uma gema de ovo bem fresca (*) do galinheiro de uma vizinha, para onde se juntam os restos desta casa, e ainda grelos de nabo, uma lata de pimientos del piquillo e banha.
Cozi os canelones durante 8 minutos em água, com um fio de azeite e sal. Ficaram al dente. Retirei-os da água e pu-los sobre papel, a enxugar.
Removi os grampos de metal que fechavam a alheira e golpeei-lhe a pele. Levei-a ao microondas para que ficasse bem quente e abrisse. Não abriu, mas foi fácil retirar o miolo do enchido para uma tigela. Aí juntei a massa de pimentão não só para temperar melhor o recheio, como para se ver os farrapitos vermelhos de pimento. As mesmas razões para a hortelã picada, só que para a próxima usarei uma colher de sopa dela por alheira, que sabia pouco a ela. Cortei os canudos dos canelones em diversos tamanhos e recheei, comprimindo o recheio. A alheira daria para dois canelones inteiros e meio.
Levei-os ao forno a 200ºC, pincelados com banha, sobre a folha de silicone. O objectivo, plenamente conseguido, foi tornar estaladiça a massa dos canelones, substituindo a pele de alheira, tão difícil de tostar. A grande maioria dessa pele é de uma substância comestível, mas não de tripa de porco, e por isso o enchido rebenta com tanta facilidade. Tirei os canelones do forno quando verifiquei que a massa estava seca e, por isso, crocante.
Entretanto, cozera em água com sal e depois cortara os grelos em pequenos troços. Temperei-os com um nada de azeite.
Já desfizera uns quantos pimentos de piquilho no copo misturador, e tinha-os passado por um coador fino, obtendo assim um puré liso. Podia ter usado pimentos vermelhos vulgares em lata, se os tivesse. Também podia ter cozido no microondas um pimento vermelho, mas isso era mais trabalho que iria arranjar. Além do mais, os pimentos que usei são muito bons, e não precisaram de nenhum tempero.
Com o forno ainda quente, pus uma gema numa pequena tigela com um pouco de água fria, levei-a ao forno e deixei-a só aquecer, rigorosamente vigiada para que não coagulasse.
Aqueci o puré de pimentos bem como os grelos no microondas. Então montei tudo como se vê na imagem do topo, o prato quente, claro. Foi o meu almoço de hoje.
(*) As gemas de ovos frescos são mais altas e firmes que a dos ovos da indústria à venda, frequentemente com meses de conservados em frio.
Etiquetas: Criações - Carne
12 Comments:
Até fiquei com água na boca. Prometo que vou experimentar.
Bem... deve ser excelente! Aparentemente, não é díficil de fazer, mesmo para alguém tão básico como eu na cozinha. O complicado deve ser mesmo encontrar uma alheira de qualidade! Até já comprei em lojas ditas gourmet e o que tinham a mais em relaçáo às do supermercado era mesmo o preço.
Sendo transmontano, um dos pratos no meu imaginário culinário é a alheira. Sempre me foi servida aquecida num fio de azeite depois de picada com uma agulha e acompanhada de batatas e
grelos que temperavamos com o proprio azeite que serviu para o aquecimento da cuja.
Nunca compreendi os meus colegas e amigos no seu gosto por aquele prato que considero ser um atentado à culinária tradicional: alheira esturricada em oleo fervente acompanhada por batata frita e ovo.... No entanto caro Avental, esta abordagem à alheira que aqui vejo não me choca e prometo mesmo vir a experimentar quando voltar da "terrinha" com um novo stock de alheiras.
Cara Goretti, não sendo igual às locais, feitas em casa, as alheiras industriais de "caça" da região de Mirandela costumam ter uma qualidade muito aceitavel.
Caro FVaz, a surpresa da modernização desta receita, comum a todo o país como refúgio de muitíssima gente, a alheira com ovo estrelado e batatas fritas, batatas que não pus por escolha do meu gosto, a surpresa, dizia, reside no crocante dos canelones, que fazem as vezes da tripa tostadinha e na untuosidade da gema com o recheio da alheira, que o põe a um nível muito superior ao do extreme. Experimente, que gosta, até mesmo sem grelos.
Não é difícil, Goretti, apenas trabalhoso como tudo. Quanto à alheiras, o melhor é ir fazendo uma prova geral num hiper, hoje uma marca, amanhã, outra, e depois escolher a "sua". As lojas de gourmet têm as mesmas alheiras que os supermercados têm, a não ser que tenham descoberto um fabricante artesanal legalizado. O melhor mesmo é fazer as suas próprias alheiras, o que não é difícil, se tiver onde fumá-las (esta é a grande dificuldade).
Pedro, melhor que comer segundo o seu modo de fazer as alheiras, comia-as eu, na brasa, sozinhas, eram daquelas tipo XXL :) Fiz o meu estágio profissional lá para sua terra natal, por isso falo assim. Gosto bastante desse enchido que os judeus inventaram para se safarem da Mesa da Santa Inquisição. Penso agora que alguma razão se terá para se fazer acompanhá-la com o ovo estrelado, tão boa é, como disse acima, a ligação da gema com o recheio da dita. Mas só a gema, tal como a pus. Melhora extraordinariamente a alheira que, já de si, não era má. São as tais sinergias que tantas vezes tenho relatado no blogue. A alheira com batatas fritas e ovo estrelado funcionam apenas como refúgio económico, mas admito que haja pessoas que, sem precisar, gostem delas assim, como eu ainda gosto do bitoque com batatas fritas e ovo a cavalo num prato de barro, servido em restaurantes de cozinha modesta, tal como acontecia no meu tempo de estudante. Porque me sabe bem? Talvez por saudades. Pela qualidade tal como hoje a concebo é que não (grau de cozedura da carne, qualidade, temperos, etc.).
Caro Avental, na brasa sozinhas não é uma refeição ... é pura gulodice :)).
Concordo completamente consigo. No entanto fui honesto, porque em casa dos meus país não tinha na altura da minha meninice lareira ou capacidade de fazer brasa.
Actualmente as nossas refeições de alheira são sempre mistas (frita e
grelhada) sempra acompanhadas por batatas e grelos cozidos.
Devo também confessar que nunca comi alheira com ovo estrelado. Talvez tenha sido um pouco brusco na crítica sem ter provado....
Infelizmente perdeu-se a tradição original na feitura das alheiras e a sua principal característica, que lhe
deu génese: a ausência de carne de porco. Actualmente raras são as que têm mais carne que a do porco.
Nas aldeias da minha zona ainda se consegue muito raramente comer algumas alheiras mais tradicionais, com coelho, lebre e perdiz (de caça) e alguma outra ave de capoeira. Mas a regra é porco+galinha+pão.
Comia as alheiras, Pedro, em duas tabernas à beira da estrada com colegas, uma das quais era toda de madeira, pertencia a uma velhota e estava isolada, fora de qualquer lugar. Um dia entrámos lá e tinha lombos de salpicão a marinar num alguidar e também alheiras XXL (davam 3 ou 4 das normais). Em ambas as tascas, havia lareira e brasas. Na da velhota, comíamos também, quando havia, febras de salpicão na brasa, com pão e vinho. Na outra era alheiras e vinho, às vezes também das XXL.
Daí para cá tenho comido alheiras caseiras uma vez por outra, umas melhores, outras nem tanto. Nunca com ovo estrelado e, ainda menos, com batatas fritas. Com grelos, sim.
Não é o ovo estrelado que, em minha opinião, liga bem. É apenas a gema, que torna o recheio ainda mais untuoso. A alheira é uma espécie de açorda que, afinal, a alheira é, com mais ou menos pão. Gosto de sentir o pão, sem as carnes virem exageradas. Tenho comido alheiras quase só com carnes, o que as torna demasiado secas. Fazem-nas assim, pensando que são melhores. Nem tudo o que é supostamente rico é bom.
Verdade que nem tudo que é rico é bom... e também que nem tudo que é caseiro é melhor que o industrial...
Caro Avental, tanta conversa sobre alheiras abriu-me o apetite por aquelas alheiras impossíveis de arranjar. Mas não havendo prontas a consumo sempre se podem encomendar.
E se não for de outra maneira sempre se pode fornecer a materia prima a uma boa artezã para ela confecionar e secar(fumar) um bom lote delas....
Na proxima temporada de caça vou encomendar a materia-prima e o producto final na aldeia onde a familia tem a "casa de campo".
Puré de batata com batatas cozidas com casca? Defenda lá esse horror!
Gabo-lhe o gosto da criatividade, mas lembra-me um pintor que não começou por muito e muito desenho clássico, como foi o meu percurso culinário.
Penso nos seus leitores que aqui deixam comentários maravilhados. Sinto-me em dever para com eles.
Pare uns tempos, leia muito, a começar por Escoffier, e depois volte a escrever. Pense em termos práticos. Algum grande restaurante lhe compra as suas criações? É coisa que eu tenho sempre presente, porque sou homem de negócios e, por isto, não publico na net as coisas que vou criando e vendendo.
Vou dar-lhe alguns exemplo de má técnica, a que os leitores devem estar atentos, para o poderem criticar.
Recordo o puré de batata com batatas cozidas com pele. Na sua receita anterior, os canelloni. Cozer canelones (escrito à portuguesa), onde é que já viu isto? Canelones são simplesmente assados crus com o recheio, controlando muito bem a temperatura e a espessura do molho. Sabia? Já fez? No caso da sua receita, admito que exijam tratamento especial, mas apenas uma fervura de dois minutos, só para ficarem ligeiramente moldáveis, antes de irem ao forno com o recheio. E alheiras sem mais nenhum tratamento a não ser a massa de pimentão, a acentuar a sua rusticidade? Não consegue inventar qualquer outra coisa?
Flor de sal, bullshit. Só para tempero em cru. Não há pessoa normal que a distinga num cozinhado.
O tomate no grelhador das costeletas, sem aproveitamento? Não é masturbação culinária?
No entanto, continuo a achar que V. tem grandes qualidades de criatividade, embora a precisar de maior erudição e de muito mais técnica, o que também quer dizer maior modéstia. Por isto, por mim, estou disposto a muito boas conversas colaborativas, mas em privado, porque não gosto do que V. apresenta em público aos nossos leitores. Eles merecem não serem iludidos. Estou convencido, absolutamente, de que não é o que V. quer fazer, mas objectivamente é.
Caro João, até já pensei em fazer eu essas alheiras enormes, só que não me deixam pô-las à boca da lareira da sala :)
Ex.mo Senhor JVC
Desceu a um nível tal que, para eu ser capaz de lhe responder, tinha que suicidar-me primeiro.
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