domingo, dezembro 10, 2006

Divagações a propósito do bacalhau acima

Antes do mais digo: estava de se rezar. Mais do que merecia um vinho à altura, um branco possante ou um tinto delicado, mas beber sozinho é coisa que não faço. Ontem não tive companhia para estas andanças. De resto, beber vinho assemelha-se a amar. É mesmo uma espécie de acto de amor, e o amor, como sabemos, exige uma presença humana, salvo o amor místico, que também a exige, mas figurada em Deus.

Aonde isto já me levava. Às vezes esqueço que este blogue é de coisas do palato.

Também quero reafirmar que quanto faço e aqui mostro, quando não refiro ninguém, sai da minha cabeça um pouco ET, sabendo nós que nada nasce do nada, há sempre algo na nossa memória, na nossa experiência, que trazemos à realização criativa. Inspirei-me vagamente num bacalhau cozido, com presunto e bordão de puré, uma delícia que provei no Salão Internacional do Clube de Gourmets, em Maio deste ano, em Madrid, e num bacalhau com molho de queijo da serra, que nunca comi e que li, referido no Contraprova, se não me engano, blogue que me é visita obrigatória, nem que fosse só pela desmontagem de muita parolice que há em restaurantes que se querem mais que tal. Mas suscita outros gozos e prazeres de leitura.

E a propósito de restaurantes mais que tal, há um desses nos arredores deste burgo, que foi do Infante, muito antes de ter sido de Cavaco Silva. Valia a ironia sarcástica e a boa escrita zurzidora do Contraprovador. Fui lá só uma vez, à Púcara, assim se chama o dito, vejam-me só este pedaço de prosa acerca dele. Só me recordo do que diziam na ementa ser “feijoada de lebre” e de uma sobremesa bastante parola a armar aos cágados (e desta, só recordo esse defeito...). A bela feijoada de lebre, de lebre estufada no seu molho escuro, a que se mistura depois feijão branco cozido, claro, e fica a fervilhar devagarinho (faço-a na ponta da unha), essa feijoada foi substituída por uns feijões vermelhos à parte e por uma lebre em vinha d’alhos, frita e ― ó Deus! ― mal passada como rosbife. Os clientes, via-se, adoravam os salamaleques e a decoração, e confundiam a sala com a cozinha. Tudo era bom. Nada mais estúpido, gastronomicamente falando (salvo as galinhas), do que a burguesia institucional de uma cidade de província, posso dizê-lo porque não nasci em Lisboa, nem isso alguma vez me condicionou.

Pois esse restaurante, onde nunca mais pus os pés, tem um bacalhau gratinado com queijo da serra, vi há pouco no Google. Pode ser bom, pode ser mais uma argolada. Eu é que jurei não voltar. Daí é que o bacalhau que fiz não tenha nem pinta dele.

Pefiro mil vezes o modesto e sempre cheio Cacimbo, pela excelente chanfana, pelos honestos chocos grelhados, pelos petiscos do balcão onde separadamente se bebe o tinto, petiscos que me servem sempre de entrada. Prefiro-o mil vezes, contadas uma a uma cada vez.

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4 Comments:

At 12/12/06 13:55, Blogger JVC said...

"que li, referido no Contraprova, se não me engano, blogue que me é visita obrigatória, nem que fosse só pela desmontagem de muita parolice que há em restaurantes que se querem mais que tal."

CLAP, CLAP, CLAP!

 
At 12/12/06 22:07, Blogger avental said...

Meu pai, no seu tempo, que era o tempo em que havia as chamadas sopeiras e casacos de peles, diria que restaurantes desses eram sopeiras com casacos de peles. Já a minha avó, fidalga da ilha, dizia: "povo, sim; meia-tigela, não".

 
At 16/12/06 15:30, Blogger JVC said...

Quanto a vinhos, meu caro, para este bacalhau, volto a dizer: Biscoitos!
O que é isto de uma avó fidalga da ilha?! será que somos patrícios?

 
At 16/12/06 18:59, Blogger avental said...

Somos mesmo, já o tinha revelado no seu blogue. E o dito da minha avó acompanha-me sempre e tem-me servido de guia nas escolhas da vida, inclusivé a recusa de restaurantes como este Púcara.

 

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