Bacalhau assado no forno, com presunto e queijo da serra, em crocante com alcaparras e coulis ácido de framboesa
Tive de dividir o post em dois, de tal modo me alarguei no princípio.
Há semanas que este bacalhau me andava vagamente na cabeça. Ontem acabei por me decidir. Cozinhar coisas inventadas é uma espécie de aventura para mim: nunca tendo trabalhado com massa brick e tendo querido, como todos nós, que o prato me saísse bem, fui ontem comprar um pacote dela pela primeira vez. Foi o meu jantar de ontem, passava das onze.
Usei lombo de bacalhau congelado, uma posta de que gastei metade, tendo comido metade depois de assada, tal era já a fome. Lombo congelado, sem espinhas nem pele, cuja boa qualidade conheço bem. Não tenho preconceitos nestas e noutras coisas. O bom é bom mesmo.
Além do bacalhau, entraram:
Massa brick, 1 folha.
Arroz, à falta de feijão seco, para moldar a forma de massa.
Azeite para assar o bacalhau.
Pimenta preta para o mesmo.
Presunto em fatias finas, embalado: 2.
Queijo da serra - 1 fatia algo grossa para cobrir.
Framboesas congeladas, q.b.
Alcaparras de conserva, q.b.
Bróculos cozidos em vapor - 1 galho.
Primeiro fiz a taça brick: era o que receava. Andei um tempo à procura de algo onde moldá-la, até que me ocorreram as formas de empratar, e usei uma quadrada, com 9 cm de lado, sobre a folha de silicone, e esta sobre o tabuleiro de ir ao forno. Procurei feijão ou grão para ajustar a massa à forma, encontrei-os, mas de conserva. Quem não tem cão, caça com gato. Usei arroz, que foi um erro, embora não fatal. Pré-aqueci o forno à temperatura exacta de 175ºC, como reza a embalagem. Meti o tabuleiro no forno. Passados 20 minutos, também como a embalagem aconselha, retirei-o. Nestas exatidões sou muito bem comportado. Deve ser da minha formação tecnológica. Deixei arrefecer um pouco e comecei a esvaziar o arroz da taça com uma colher de sobremesa. Muitos grãos tinham ficado colados à massa, e estive uma porção de tempo a removê-los com cuidados de cirurgia. A massa estava muito fina e bonita. Uns seixitos redondos, rolados pela água durante séculos, ainda é o melhor para este efeito. Tenho de ir por eles. Ficarão a fazer parte da minha bateria de ferramentas.
Já o bacalhau assava no forno, num prato refractário, partidas as duas metades em quatro pequenas postas, juntas e na mesma forma de empratar. Baixei a temperatura para os 160ºC. Fui-o abanando (por 3 vezes) para que não se pegasse ao fundo. Passados uns 40 minutos, quando vi os riscos das lascas desenhados, retirei-o. As pequenas postas arrefeceram um pouco e no prato, com o azeite, ficou uma substância gelatinosa que forma o molho do bacalhau pil-pil que o Mestre Cuca fez em Julho passado. Estava com fome, já era tarde, só caberiam duas postas. Comi então, como disse acima, as outras duas postas. Com umas batatitas novas cozidas, só assim, já seria uma delícia de prato, devido não apenas à qualidade do bacalhau, como também ― é muito importante ― ao tempo de assar e à temperatura do forno. Estava untuoso, firme, mas a desfazer-se na boca
Entretanto cozi os bróculos em vapor com flor de sal e fiz o coulis de framboesas. Passei-as, esmagadas, num coador fino, e assim fiquei só com o sumo e a polpa. Não levou açúcar nem mais nada.
Enrolei as duas postas, cada uma em sua fatia de presunto. Encaixei-as com extremo cuidado na taça brick. Cobri-as com a fatia dividida de queijo da serra, e levei ao forno para o queijo derreter.
Aqueci o coulis de framboesa no microondas e montei o prato. O acre das alcaparras e o ácido do coulis de framboesa (e o seu aroma) vieram dar uma ligação inteiramente nova a estes sabores tradicionais e potenciá-los. A massa brick, de um estaladiço suave, criou um contraponto à textura do resto do prato, cuja maior presença era uma untuosidade refinada. É um dos encantos que me fascina neste tipo de cozinha.
Estava, como escrevo abaixo, de se rezar.
Etiquetas: Criações - peixe
25 Comments:
Este bacalhau parece-me óptimo, mais uma das suas excelentes sugestões.
Um manjar dos Deuses, não há dúvida! :-)
Avental, não tenho comentado muito, mas este blogue destaca-se nas minhas leituras blogastronómicas, pela sua criatividade e pelo bom gosto. Muito do que leio alhures são só receitas da tia que até não cozinhava mal. Creio que vamos ter de arranjar maneira de publicar boas polémicas. Desde já, a propósito de um comentário seu ao meu blogue, sobre o conceito da composição dos pratos. Guardando para melhor discussão, parece-me que V. privilegia a orquestra sinfónica, eu o quarteto de cordas. Sinfonias ouço-as em ocasião solene, um quarteto em música de fundo de um grande jantar. Também desconfio de que fico mal em qualquer discussão, porque me palpita que V. é profissional. Se não é, "chapeau!"
Gostei muito da sua sugestão de bacalhau, desde logo pela aventura da experiência da massa brick. Nunca tinha pensado nisto, mas creio que deve resultar. Entre parênteses, acentuo que uma coisa muito interessante da sua escrita, que é ir falando do que faz, entre erros e sucessos. Gostava de chamar a atenção para uma coisa essencial que escreve. Quem não tem cão caça com gato. V. usa bacalhau congelado e presunto fatiado de embalagem de supermercado (a propósito, para bacalhau, sugeria bacon ou toucinho fumado, bem demolhados em leite, em vez de presunto, mas gostos não se discutem). Para qualquer escriba encartado, é grande crime. Mas que mal tem isto, se for de boa qualidade e, ainda por cima, corresponder à vida real das pessoas e do seu tempo disponível para as compras? No entanto, em contradição para mim, refere a flor de sal. Alguém, mediano, reconhece a diferença? Que exija sal marinho, como eu, muto bem.
Duvido do coulis de framboesas. Sou mais clássico, mas é bom que haja gente para todos os estilos. Já agora, peço-lhe opinião sobre uma receita minha recente de bacalhau, coisa muito suave, para além de muitas que tenho no meu livro.
Suspeito que vamos ter muitas conversas neste blogue, mas talvez possam ser pesadas para os leitores. Não quer entrar em contacto directo comigo?
Nossa que maravilha de receita. Vou tentar preparar aqui em casa!! Obrigada por todas essas deliciosas receitas de bacalhau. Hummmm... adoro!!
Laranja com Canela, este bacalhau, para um só e sendo só um a fazê-lo, dá trabalho. Para um jantar com mais gente e sendo dois ou mais a dividir as tarefas, eu parto e asso o bacalhau, tu enrola-lo, eu meto-o na taça brik e ponho o queijo, tu vigias enquanto o queijo derrete, retiras e pões no pratos, eu faço o bordão de coulis, tu pões as alcacapaarras, sendo dois ou mais, dizia, os pratos seguidinhos como num processo fabril, é um ai.
Elvira, creio que se Ganimedes o levasse para o Olimpo, Zeus disfarçava-se de anjo para o saborear lentamente :)
JVC, não sou cozinheiro - vida bem dura, essa! -, não se vê nem sol nem nuvens quase todo o dia, e do que eu gosto mesmo é de liberdade. A cozinha para mim é um passatempo com o qual me descontraio e me consolo e consolo outros.
A propósito de quem não tem cão, caça com gato, referi o ditado apenas no contexto do arroz para ajustar a massa à forma. Foi mesmo um gato a levantar perdizes.
Se soubesse, como eu sei, quantos e que componentes entram no bacon, não depreciaria este presunto “fatiado de embalagem de supermercado”, um presunto normalíssimo em Espanha, a quilómetros de um reserva ibérico de bolota, mas que, para nossa desgraça, mete praticamente todos os presuntos portugueses num chinelo. É aromático, macio da gordura intersticial, com sal no ponto. As sinédoques são sempre perigosas. E depois a associação fica muito mais subtil, porque o cheiro “regional” a fumo, neste prato, iria ser uma fífia das grandes na partitura, continuando com as suas metáforas musicais. Já o toucinho fumado é uma coisa tão rara, tão rara que não me lembro de o ter visto. No entanto, o problema seria o mesmo fumo do bacon, que o presunto não tinha.
O bacalhau que usei é muito bom, vá ou mande ir onde tenham o da marca Pascoal, lombos limpos. Bastava assá-lo como eu o assei, a parcimónia do tempero, o tempo e a temperatura, e comprovava a verdade do que digo. E depois como se podem comparar dois bacalhaus, o branco e o de cura amarela?. E em tudo há boa e óptima, má e péssima qualidade. Como disse, não tenho preconceitos. Tanto entro numa tasca como no Eleven, isto para ficarmos pelo jardim à beira-mar..
Quanto à flor de sal e ao sal marinho, uso ambos (caramba, o sal marinho há-o aos montes! Agora é moda, essa do sal marinho). A flor de sal, só em grelhados de carne, novilho, cabrito e borrego, no tomate cru, do maduro e doce, às fatias com azeite e nos bróculos e ervilhas de quebrar cozidos em vapor. Usando, para as carnes, logo depois de grelhadas, para o tomate na hora, para os vegetais em vapor desde o início, verá que a diferença entre o sal marinho e a flor de sal se nota quase com o nariz tapado. É muitíssimo mais suave.
Quanto ao coulis de framboesa, assiste-lhe o direito de torcer o nariz. Pode ser uma questão de hábito, afinal a nouvelle e a haute cuisine sempre foram cão e gato, um pouco como na arte: a uma escola nova opõe-se a antecedente que não quer ser destronada. Eu, por mim, estou habituado às duas. Muito mais estou à portuguesa tradicional, e depois à espanhola por circunstâncias da minha ocupação. E no blogue pode ver que sou bastante eclético.
O seu bacalhau parece bastante bom. Critico o vinagre balsâmico e alguma complicação no puré de legumes. Por mim faria só puré de grão. Restou-me um pouco a dúvida se o bacalhau é mergulhado também no azeite. Se eu ler à letra, o azeite só é posto por cima quando o bacalhau vai ao forno. Face aos meus 40 minutos a 160ºC já com o forno pré-aquecido (tenho um termómetro para o forno), a temperatura de 90 ºC parece-me demasiado baixa para apenas 1 hora, mas se o escreveu é porque é assim.
A Taste, experimente acompanhar este bacalhau - ó heresia! - com um dos champanhes que cita, mais os brancos que os rosés. De certeza que vai espantar os seus convidados com mais esta ligação que me parece "of the heaven". Na mesa, como na vida, devemos afastar o tédio das coisas que andam sempre por carris.
Damelun, duplamente ambrosiano :)
Avental, para quando o desafio? ;)
Tem um excelente aspecto, e deve ser muito bom... mas confesso que o coulis d framboesas misturado com o bacalhau me deixa um bocadinho desconfiada!
Laranja com Canela, não imagino que desafio seja. Talvez o HEMC6? Se é, já tenho uma ideia vaga na cabeça. Os doces de Natal parecem-me já todos feitos, mas acho que vou dar a volta a isso :)
Colher de Pau, gostava que provasse a ligação que o muito ácido das framboesas fez com o resto essencialmente gordo. Talvez gostasse. Mas quando lembro pessoas que não gostam de queijo, mesmo que queiramos enganá-las, escondendo-o num cozinhado (trabalho vão), mais depressa tenho de aceitar a diversidade de outros gostos.
Tardiamente, respondo ao Avental sobre a receita de bacalhau assado a baixa temperatura. Foi bem testada. no forno, o bacalhau não vai completamente coberto com azeite, o que udaria a tempeartura. o ideal, para quem como nós tem termómetro, seriam os 80º. A maioria não tem e verifiquei que o forno a 90º, se não estiver sempre a ser aberto, resulta nisso. Garanto que, no fim, o bacalhau está bem assado mas com uma untuosidade e suavidade dignas de nota.
Entretanto, pedi a um bom cozinheiro que ainda se governa com forno a gás para testar no velho forno. O resultado é o que vai na receita.
O puré teve que se lhe diga. Comecei por pensar nos sabores tradicionais do bacalhau com todos. um puré de grão ficou demasiadamente agressivo, para meu gosto. continuou assim com o feijão frade e acabei por o suavizar com o feijão branco. Para meu gosto, ficou muito bem.
Dos outros acompanhamentos, o que prefiro é o bolo de juliana de lombardo apertada em folhas do dito. Não é tudo isto evocativo dos velhos gostos portugueses, em relação ao bacalhau?
Tenho trabalhado, em casa, visto que não sou profissional, com massa bric.
Para mim a melhor maneira de a usar é em conjuntos de 3 folhas pinceladas com manteiga (eu prefiro) ou margarina e se fizer caixa pô-las umas em cima das outras de maneira desencontrada.
Quando eu fizer este bacalhau, que me pareceu delicioso, prefiro embrulhá-lo na massa bric em vez de fazer a caixa.
Já sinto água na boca só de imaginar o aspecto cremoso ao abrir a trouxinha.
Cumprimentos
PS. o bacalhau pil-pil é uma receita tradicional do País Basco.
O puré de grão fica maravilhoso e suavíssimo se lhe juntarem iogurte. Experimentem e vão tentando a quantidade segundo o vosso paladar. Deixo-o sempre ferver depois de juntar o iogurte.
Não é culináriamente correcto, mas tenho-me dado bem com o resultado.
Cumprimentos.
JVC, então o bacalhau permite várias temperaturas de forno, sem perder a gordura intersticial e o perfeito folhear em lascas. Pelo menos até 160ºC, durante os tais quarenta minutos, para estas postas cortadas a 2,7 cm de comprimento(+ -).
Quanto ao puré, reconheço, este meu e o seu bacalhau são bem mais exigentes que o da meia-desfeita, cujo puré de grão cheio de temperos fortes pode ver aqui:
http://aventalgourmet.blogspot.com/2006/08/pensando-na-meia-desfeita.html
Um dia, torno ao bacalhau assado no forno, sem queijo e sem presunto, e com um puré de grão especialíssimo para ele numa tacinha brick.
Marta, como disse sou mais que inexperiente em massa brick, trabalhei-a apenas uma vez, corro frequentemente riscos destes, até com convidados.
Também pensei em embrulhar o bacalhau na massa, mas aí deparou-se-me o tempo diferente de cozedura da massa (20 minutos) e do bacalhau (no meu caso, 40 minutos), além de que o queijo se perderia por excesso de tempo. Se tiver uma solução para estas contradições, fico-lhe grato.
Marta, ainda: o puré de grão com iogurte é capaz de ligar bem num prato de sabor oriental. Aí acrescentar-lhe-ia tahin, pasta de sésamo.
Olá outra vez
Porei o bacalhau a fazer metade do tempo e a outra metade já embrulhado.
Já fiz rolinhos de queijo da serra em massa bric e, a mim, pareceu-me que tinham ficado bons. Fiz como acompanhamento de um óptimo bife de lombo. A carne era excepcional.
Com puré de grão com iogurte pode-se pôr de lado o vinagre balsâmico.
Verdade que nunca acompanhei bacalhau com ele, mas sim roastbife e não ficou com sabor oriental, julgo eu.
Marta, se o queijo fica apenas cremoso (ficou no forno só o tempo esrito de derreter), e não um pouco como borracha por excesso de cozedura, como o queijo das pizas, isto é, com fios elásticos, então está bem.
Também fiz um bife de ver a Deus com queijo da serra, mas em molho. Está aqui:
http://aventalgourmet.blogspot.com/2006/10/bife-de-lombo-de-novilho-com-molho-de.html
O puré de grão com iogurte deve ser uma delícia com rosbife. Uma ligação e tanto. Cá me fica para as minhas maluqueiras criativas. Quando o utilizar farei a respectiva ligação ao seu blogue.
Fez-me rir. Não faça a ligação, porque o meu blogue não é de culinária e estamos a trocar ideias.
O queijo da serra não me tem ficado como pastilha elástica. Altera um pouco o sabor, tal e qual como no molho do bife.
Cumprimentos.
Agora sou eu que me rio :) Falava da ligação do grão-de-bico com o iogurte :))
E depois a culinária vem atrás de outras coisas. Veja à direita os blogues a que chamo de outros afectos, e um desses afectos não é apenas afecto. É uma dependência vital. Donde a poderia ligar aí sem estar a trocar figurinhas.
Está bem! Está bem!
Não precisa de bater na ceguinha.
Beijinhos
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