quinta-feira, junho 22, 2006

Um escabeche talvez diferente

Sou perdido por escabeche, por escabeches, de meia-sardinha, de carapau pequeno, de sável, de trutas selvagens (e arranjá-las?), de enguias, de mexilhões, de cordoniz, de perdiz, venha Deus e escolha, que de todos comi e a maior parte fiz, salvo o de sável e o de trutas selvagens (fi-lo de trutas de viveiro).

Vamos a um escabeche de carapaus, um pouco maiores que jaquinzinhos. Serve também para meia-sardinhas Um escabeche simples, que tem uma particularidade que o torna diferente e especialmente guloso e fresco.

Depois de temperado com um pouco de sal, envolve-se ligeiramente o peixe, um por um, em farinha e ovo batido. Envolver ligeiramente quer dizer que o sacudimos bem e pacientemente, sem nos preocuparmos se ficam ou não partes de peixe por cobrir.

Cortam-se cebolas em rodelas finas, em meias rodelas como ensinam aqui (estamos sempre a aprender), dois ou três dentes de alho com casca, abertos sob a lâmina da faca deitada, com uma pancada sobre ela. Tem-se salsa que não seja dois pés apenas, um pouco de pimentão doce e aromático, vinagre branco bom, azeite onde se fritam os carapaus e onde, em lume médio, se lhe segue a cebola até ficar transparente. Nesta altura junta-se-lhe água, os alhos, sal, vinagre a gosto, a salsa, o louro, o pimentão, e vai a cozer em lume brando, corrigindo de sal, vinagre e água, porque o escabeche quer-se bem molhado, especialmente este. Daí que a quantidade de azeite seja mais generosa na sertã que o necessário para fritar.

Este molho, que deve ficar apurado e não uma aguada, cobre os carapaus já frios, acamados num pirex ou em algo semelhante, e assim ficarão dois ou três dias, virando-se os de baixo para cima com cuidado. Comem-se com batatas cozidas e fatias de tomate altas temperadas com sal grosso. Trincamos o sal grosso, que é bastante agradável com o tomate, e o albardado do peixe retém-nos todo o sabor do escabeche. Esta será a particularidade, o que establecerá a diferença: o realce que o albardado dá ao peixe de escabeche, porque absorve mais o molho e cria uma textura húmida que liga bem com o peixe, mais seco.

Tenho-o comido, como aperitivo, num restaurante daqui, embora com vinagre a mais para meu gosto. Empregaria um terço dele, apenas. Que saiba a vinagre, sim, tem de saber, mas que não mate os outros sabores.

Não sei de vinho que case bem com escabeches deste tipo.

8 Comments:

At 23/6/06 11:10, Blogger Paula said...

Fantástico!
De facto há certos blogs que não se podem visitar com o estomâgo vazio...

 
At 23/6/06 23:41, Anonymous Anónimo said...

A mim só me cai bem um tinto maduro...:)))

"(...)E sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou, descansando de tantas agitações, numa vida de pachorra e boa mesa, com alguns companheiros de emigração (o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão, de uma lampreia de escabeche que lhe mandara o seu procurador de Montemor. (...)".

A cidade e as serras :))))

Maria Helena

 
At 24/6/06 11:52, Anonymous Anónimo said...

Da Cidade e as Serras recordo-me daquela canja olorosa, com olhos de enxúndia a sobrenadar e, agora que me lembrou, dessa lampreia de escabeche que nunca comerei, não vá morrer também :)

Alegro-me que se dê às coisas da cultura, para além das actividades em que a cultura funciona como sufixo ;). Eça e Proust são um bom indicativo. Será que conhece aqueles churrascos enormes envoltos em farinha de cevada e as hecatombes de vinho misturado com água que Homero descreveu?

Tinto com peixe? Só se for um verde tinto para as sardinhas de ontem à noite ou um maduro pouco encorpado e novo para o bacalhau.

Como beber um vinho com algo a saber a vinagre? São dois inimigos inconciliáveis, o vinho e o vinagre e os seus cheiros. Por mim prefiro água fresca.

 
At 24/6/06 14:38, Anonymous Anónimo said...

Pois que assim seja...
Tinto com peixe, sim senhor!Tinto maduro não tem nada a ver com sabor a vinagre, Ilustre Gourmet...
De Proust, ficou o aroma das madalenas e da canja que rescendia e do Jacinto que abominava favas temos o nosso Eça...
De Homero temos os churrascos pantagruélicos e toda a história da humanidade...

Umas das qualidades da gastronomia, a meu ver, é dar-nos a possibilidade de não sermos preconceituosos :)))

Tinto com peixe!!! :)))))

Maria Helena

 
At 24/6/06 20:28, Anonymous Anónimo said...

Vejo que é incondicional do vinho tinto, Maria Helena. Também me dá mais prazer um bom vinho tinto pela sua muito maior complexidade. De resto, é um vinho mais saudável.

Mas repare, só vou um pouco mais longe, quando procuro escolher vinhos tintos ou brancos, leves, encorpados,aromáticos, complexos, mais ou menos alcoólicos, novos ou velhos, consoante o que vão acompanhar, por uma questão de equilíbrio real e demonstrável.

Não pretendo modificar o seu gosto, tem todo o direito a ele. Penso, no entanto, que os gostos se discutem em determinados aspectos da mesa, como na arte em geral (a que a cozinha, por mais criativa que seja, não pertence: deste modo me demarco de ideias que nunca tive).

Prefiro um parágrafo do Eça aos livros todos de todos os Paulos Coelhos e Margaridas Rebelos Pintos deste e do outro mundo. Creio que nisto estará de acordo comigo.

Não estará de acordo é quem seja admirador desses industriais e consumidor dos seus produtos. Nós diremos que os seus clientes não precisam de arte para nada, que não se habituaram a ela e, mutatis mutandis, que lhes basta o McDonald's e a Coca-cola. E não é difícil provar que Margaridas e Paulos Coelhos, tal como o McDonald's, são fabricantes de produtos que nada têm a ver com a arte, com a boa mesa e com o bom-gosto decorrente do seu usufruto.

Isto não significa que não adore os seus jaquinzinhos fritos passados por farinha de milho (no Minho fazem isso com a meia-sardinha). Tantas vezes digo que é o peixe de que mais gosto, sem me lembrar de outros. Mas que os acompanho de vinho branco, isso acompanho. Ou de água fresca, que liga bem com tudo e é um dos nossos maiores bens.

 
At 24/6/06 20:41, Anonymous Anónimo said...

Ah, esquecia-me do vinagre :) O vinho tinto só tem a ver com o vinagre quando azeda :) A mistura da acidez acética do escabeche com os aromas do vinho enganam o palato, tanto faz que seja tinto como rosé ou branco. Dão-nos a falsa ideia de que esses vinhos têm já acidez volátil, isto é, que estão avinagrados, coisa tão longe do preconceito.

 
At 25/6/06 07:58, Anonymous Anónimo said...

Touché! :)))
Já percebi que o meu gosto pelo tinto maduro com escabeche pode "abastardar-me" os sabores!:))

Água da fonte!! :))

Maria Helena

 
At 25/12/06 21:46, Anonymous Anónimo said...

isto é mesmo à portuga !

 

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