domingo, junho 11, 2006

Não há nenhum manjar que valha
os do espírito, altos como este

Aqui me achei gastando uns tristes dias,
tristes, forçados, maus e solitários,
trabalhosos, de dor e de ira cheios,
não tendo tão-somente por contrários
a vida, o sal ardente e águas frias,
os ares grossos, férvidos e feios;
mas os meus pensamentos, que são meios
para enganar a própria Natureza,
também vi contra mi,
trazendo-me à memória
algüa já passada e breve glória,
que eu já no mundo vi, quando vivi,
por me dobrar dos males a aspereza,
por me mostrar que havia
no mundo muitas horas de alegria.

Aqui estive eu co estes pensamentos
gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
me subiam nas asas que caía
– e vede se seria leve o salto! –
de sonhados e vãos contentamentos
em desesperação de ver um dia.
Aqui o imaginar se convertia
num súbito chorar e nuns suspiros,
que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna:
soberba, inexorável e importuna.

Luís de Camões, 3.ª e 4.ª estrofes da Canção IX

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