Folhado de galinha estufada
O blogue prova que sou, na cozinha e na mesa, uma pessoa dada a comidas de todos os extractos, frequentador de tascas e restaurantes modestos a restaurantes de topo, com a qualidade e as características exigidas a cada um deles.
Se este tipo de cozinha, a cozinha criativa, me dá prazer estético e a procura de novos sabores e conjunções me atrai; se pensei durante um dia neste prato, isto é, no seu tema central, a perna de galinha estufada, e ando há uma semana a pensar numas migas à maneira alentejana, daquelas de enrolar na sertã, mas com sabor a Beira Alta, umas migas de grelos de nabo, para acompanhar uns jaquinzinhos fritos que ainda não encontrei; se ontem pensava fazer francesinhas e não as fiz por irem dar-me imenso trabalho - só o molho! -, mas que comia com prazer, com uma cerveja; se neste blogue há de tudo, então serei uma pessoa pouco esquisita, e este prato não é mania nenhuma nem a dar-se ares de nada. Por isso, sem razões para me tomarem por elitista pedante (nem elitista nem pedante), podia ter dado a este prato o título: Folhado de perna de galinha estufada em porto e hortelã da ribeira, com puré de avelãs tostadas, maçã frita em manteiga de cardamomo e cerejas passas embebidas em conhaque. Ainda passava por aqui alguém e pensava: Folhado, onde raio é que está esse folhado? Podia explicar, sem que entendesse, que se tratava de uma desconstrução (culinária, que me perdoe Derrida). De qualquer modo, agora serviu para descrever o prato...
Corei a perna em azeite, como é já hábito neste blogue para estufados. Ia temperada só de sal.
Quando estava corada, juntei-lhe 3 chalotas picadas e ficaram a cozer no azeite. Antes que pusesse algum líquido, descuidei-me e queimaram-se, isto é, ficaram da cor da cebola para um refogado puxado, quando a queria apenas cozida, transparente. Em boa hora. O descuido dera um sabor especial ao estufado, e tanto assim é que repetirei o mesmo, para este e para outros estufados. Há coisas no fogão que se descobrem por acaso ou errando, como esta. Coei o azeite, deitei a chalota picada e castanha no balde das galinhas, deglacei o fundo do tacho com um gole de água e juntei novas chalotas, desta vez inteiras. Adicionei um gole de porto D. Antónia, um porto bom não só para a cozinha, também para beber, a menos de 9 €. Tapei o tacho e deixei estufar. Não usei a salsa que se vê na imagem acima, usei hortelã da ribeira que tenho num vaso. Fui estufando a perna da galinha (bem grande, basta compará-la com a garrafa na imagem acima, por exemplo), deitando a princípio um gole de porto sempre que precisava de líquido, e depois de água, o tacho tapado. Temperei a meio com pimenta preta de moinho. Também, nessa altura, pus umas gotas de sumo de limão - poucas, 4 ou 5. Fui corrigindo de sal e juntando raminhos de hortelã da ribeira. A perna foi estufada longamente, no bico mais pequeno, lume no mínimo, por bem mais de 2 horas. Ficou como na imagem acima, a pele, a carne, o molho.
Previamente tostara no forno uma mão cheia de avelãs e, antes ainda, pusera as passas de cereja a amolecer em conhaque. Cortara uma rodela de massa folhada comprada num hiper e cozera-a no forno a 200 ºC. Retirei a perna e desossei-a. Aproveitei a pele, coei o molho.
Derreti manteiga numa sertã, juntei-lhe as sementes de uma vagem de cardamomo e pus gomos de maçã vermelha com casca a fritar.
Moí bem as avelãs tostadas na picadora, e fui-lhes juntando molho até formar uma papa. Corrigi de sal. O forno estava quente e pus nele o folhado já no prato de servir, bem como a carne e a pele de galinha, e ainda o puré de avelã.
Estava tudo bem quente, prato inclusivé, quando comecei a montagem. Primeiro, o folhado; sobre o folhado a carne desossada em três bocados; por cima da carne, a pele por que sou doido desde miúdo. Por sobre a galinha umas folhas de chicória, escarola e um vegetal da cor da couve roxa com um nome esquisito, salada que temperei com molho do estufado. Coloquei o "puré" de avelãs num pequeno copo com um rebento de hortelã da ribeira, dispus as fatias de maçã e enfeitei o prato com as passas de cereja.
A conjunção de sabores estava muito boa. Consegui, com o cardamomo, uma grande discrição do seu aroma forte nas fatias de maçã. Sabiam a cardamomo, porque eu sei que era cardamomo, quem as provasse, conhecendo-lhe o sabor, para adivinhar que aroma era aquele, teria de puxar bem pela memória de gostos e olfactos. O "puré" estava muito bom, a saber a avelã tostada e ao molho, uma espécie de praliné salgado... a galinha, tão macia, tinha um aroma muito suave a hortelã da ribeira e um longínquo doce do porto. As passas de cereja contribuiram para os sabores raros. O doce delas e o gosto do conhaque marcaram uma diferença forte. Salvo algumas técnicas e a matéria-prima já pronta (a massa folhada, que aliás já fiz muitas vezes), tudo o mais é original.
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