Poderão dizer que sou um
bifó-dependente. É que os bifes aqui postos, em palavras e imagens, já chegavam e sobravam para um livro de receitas, quanto mais para um blogue de culinária e gastronomia que não se quer mais que isso mesmo: um blogue. Aprecio, sem dúvida, bons bifes, tanto quanto aprecio batatas cozidas saborosas, regadas com azeite excelente. Poderiam, com alegria, servir-me de prato único, e digo mais: com uns jaquinzinhos fritos frescos, mandava o bife excelente dar uma volta ou, com mais sabedoria, guardava-o para segundo prato...
No reconhecimento da qualidade das matérias-primas, em q.b. de paixão, em experiência colhida de outros, de mesas alheias e de casa dos pais e avós, de livros, de mundo e agora também de blogues, nisto é que se baseia a qualidade do que fazemos, qualquer que seja o ranking da "nobreza" das comidas, que para mim se tem revelado falso. Porque se digo que o foie gras demi-cuit é a minha iguaria preferida, estou a esquecer-me de mil e uma preciosidades, modestas ou não, que o mundo tem e que, não poucas vezes, me apetecem mais. Portanto, para mim, rankings dependem do momento e de algo tão caprichoso como o apetite.
Queria acabar aqui o circunlóquio, mas reparo agora, numa releitura do que escrevi, que o vício continua por mais um parágrafo.
Comi um bife parecido com este no
Restaurante Otzarreta, em Zarautz, no País Basco do lado ibérico. A massa era diferente, e a carne, de
filet mignon. Diriam os espanhóis que me trato a
merluza y solomillo. No entanto, se gosto muito da pescada grande da Galiza, já o
solomillo, ou seja, o
filet mignon, o lombinho como lhe chamam nos talhos daqui, passa-me ao lado, a maior parte das vezes, por ser pouco saboroso. Escolhi pois, no Pingo Doce, que é de todas as grandes superfícies a que tem melhor carne de bovino (Jerónimo Martins devia pagar-me a publicidade), escolhi, dizia, um bife da vazia, que mandei cortar alto, com 2,5 cm de espessura, uma carne que viria a mostrar-se tenra, sápida e a... 8.67 € o quilo. O l
ombo custa mais do dobro e não o quereria, mesmo que fosse mais barato do que a vazia. E se trouxe vazia, foi porque o acém, ainda mais barato e com mais sabor, não estava a meu gosto, com a indispensável rede de fios de gordura, como neste bife se nota (ver na imagem de topo). O acém que me mostraram era de outro animal de certeza, tanto que naquela rede de supermercados recebem a carne já em peças definidas.
Pronto. Vamos então às lides.
Numa sertã, pus um pouco de azeite, levei-a ao lume e limpei-a, não excessivamente, com papel de cozinha. Deixei-a aquecer muito bem, atá quase não aguentar a mão a uns 10 cm do fundo da sertã. O objectivo do azeite e do calor foi selar a carne o mais rápido possível numa e noutra face, e também nos lados, uma vez que eu queria o bife mal passado, e ainda teria que ir ao forno. Uma vez conseguido o tostado indispensável à saída dos sucos e também,
curiosamente, constituindo uma barreira retardadora da penetração do calor depois no forno, temperei o bife com flor de sal e pimenta preta do moinho e reservei-o até estar completamente frio, mais uma vez com o objectivo de conseguir a carne mal passada no final da confecção.
Quando completamente frio - tinham decorrido mais de 2 horas -, enxuguei-o com papel de cozinha e envolvi-o bem em queijo parmesão ralado, como se o quisesse panar.
Desdobrei a massa areada, comprada num hiper, tirei as medidas ao bife e cortei-lhe a vestimenta. Embrulhei a carne na massa, tendo três cuidados:
- Sobrepor a massa o mínimo possível.
- Humedecer os bordos com água, para ficarem colados depois de uma pressão com os dedos.
- Fazer 9 orifícios que as tiras na imagem à direita apenas esconderiam, já
que foram coladas com água num ponto apenas, em todos os espaços entre os orifícios que as tiras cobrem. Os orifícios foram feitos para o vapor sair sem fender a massa.
Pré-aqueci o forno a 180 ºC . Pincelei a massa com gema de ovo diluída com um pouco de água, e levei o bife assim embrulhado ao forno, num tabuleiro com um tapete de silicone, até a massa ganhar cor (18 minutos no meu caso).
Enquanto isto se passava, fiz uma base de molho de carne. Depois de composto, serve para
molhos de bifes, para gelatinar peças, para substituir o em geral pouco menos que detestável molho das francezinhas, etc. No caso presente, serviu para temperar os vegetais de acompanhamento. Cortei umas tiras de carne de limpa de novilho, sem gordura, e levei-as a grelhar numa frigideira sem mais nada. Quando vi as tiras tostadas mas não queimadas, juntei-lhes água e deixei ferver, para que retirasse a cor e o sabor da carne grelhada. Deixei reduzir e temperei de sal. Reservei o molho.
Para os vegetais de acompanhamento, usei uma mistura pré-lavada para sopas, que vem em
bolsas de atmosfera neutra. Esta trazia repolho, nabo, cenoura, alho francês. Adicionei-lhe aipo. Pus azeite numa sertã - ainda não tenho wok! - e fui volteando sempre os vegetais em lume no máximo. Demora algum tempo, mas dá um gozo distraído andar a mexê-los de um lado para o outro, a saber que irão ficar bem, porque é um método que nunca falha e podemos pensar em outras coisas. Ou seja, levar estes vegetais até um ponto de cozedura um pouco além do que os chineses usam é muito diferente, em exigência, das operações todas a que este bife obrigou.
Todavia, o ponto de cocção chega, e o cérebro volta à realidade do fogão, do lume, da comida, que tempos exactos gravados na memória exigem. Está na hora de juntar um gole de molho de bife, passar de novo os vegetais pelo bico, juntar ainda mais outro gole de molho, porque um só não se mostrara suficiente, adicionar 4 (quatro) gotas de molho inglês, dar mais uma volta, corrigir de sal e reservar.
Estava na hora de retirar o bife do forno. O silicone não serve só para cirurgia estética, é ainda melhor na cozinha. Poupa-nos, pelo menos, a chatice de barrar formas e tabuleiros. A pressa de jantar era já alguma. Empratei o bife, abri-o e veja-se como a carne se manteve no ponto:
Estava tenra, a massa era uma delícia de brandura, por vezes estaladiça, e tudo tinha o sabor equilibrado do parmesão com a carne. Os vegetais assim feitos revelaram-se, mais uma vez, um acompanhamento muito bom.
Vá por mim, tenha alguma paciência e deite mãos à obra.
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